A Arte da Vida Leiga (Parte IV)

A maior parte dos ensinamentos do Buda foi dada a monásticos. Mas e quanto aos praticantes leigos? Nessa série de estudos que o blog Budismo & Sociedade está publicando semanalmente, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre a arte de viver do budista leigo. Nesse quarto de dez capítulos, o autor destaca que quando escolhemos um estilo de vida, nos esquecemos que nossas atitudes desencadeiam uma série de reações. Ou seja, quando fazemos escolhas, temos que pensar na complexa rede de eventos que nossas escolhas nos colocam. Trata-se do ensinamento de Origem Dependente (paṭiccasamuppāda). Dessa forma, o monge afirma que sem entender as ligações causais entre as coisas, o praticante budista não pode saber o que trazer para sua vida para obter determinado resultado. O praticante leigo, portanto, deve estudar o Samsara para poder ajustar seu estilo de vida de acordo com o que descobrir.

De Bhikkhu Cintita Dinsmore

Selecionando elementos (Continuação)

Sua vida é baseada numa longa sucessão de decisões de estilo de vida que você mesmo tomou. Algumas dessas decisões incluem algo somente porque esse algo te agrada, algumas delas incluem elementos obrigatórios. Essas são as pressões envolvidas no processo decisório. Se você é como a maioria das pessoas, você tomou essas decisões com pouquíssima reflexão.

Semana passada comecei a discutir o passo “selecione os elementos”, o primeiro passo na arte da vida leiga (os passos são: selecione – rejeite – equilibre – simplifique). Você já passou por esse passo provavelmente com resultados ruins; é uma boa hora para revisitar o passo de seleção com mais reflexão e sabedoria ganhada através da experiência de ter que viver as consequências de suas próprias decisões. Eu sugeri que você priorizasse os elementos em sua vida, para tentar descobrir quais são não-negociáveis e quais são frivolidades. A seleção de elementos deveria ser algo que você revisita muitas e muitas vezes ao longo de sua vida, enquanto desenvolve mais discernimento em paralelo com sua prática budista; isso é muito mais valioso do que se importar com seu portfólio de investimentos, por exemplo, para uma vida de qualidade.

Nessa semana, quero adicionar outra dimensão às considerações por detrás da seleção de elementos. Quando pensamos que estamos trazendo um elemento (“Sorvete. Eu gosto de sorvete. Vou anotar isso como um dos elementos do meu estilo de vida.”) estamos na verdade trazendo uma massa de elementos incidentais, implicados causalmente ao mesmo tempo (“Como fiquei tão gordinho?!?!”).

Elementos incidentais. “Porque isto surge, aquilo surge.” Esse é o princípio budista da Origem Dependente, o qual o Buda apresentou para nos ajudar a compreender o samsara, como ficamos presos na vida. Conhecemos, em particular, na sequencia de doze elementos, entre eles:

Contato -> sensação -> desejo -> apego -> ser/existir

Uma variação menos conhecida (em DN 15), tangendo questões sociais, também inclui:

Apego -> busca -> ganho -> decisão -> desejo e cobiça -> apego -> posse -> mesquinharia -> salvaguarda -> tomar clavas e armas, conflitos, brigas e disputas, linguagem ofensiva, difamação e falsidade, etc.

Uma variação moderna poderia ser a seguinte:

Estresse -> assistir TV -> ver comercial -> desejo -> comprar -> dívida – > trabalho.

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Apesar dessas listas tradicionalmente serem apresentadas em sequências lineares, está claro que elas, na verdade, se organizam numa complexa rede de causalidade na qual cada fenômeno que surge tem muitas condições e condicionam muitos fenômenos que surgem. “Desejo”, por exemplo, aparece nas três sequências acima. O que se pretende dizer aqui é que quando trazemos uma dessas coisas para nossa vida, mesmo um simples pensamento, nós geralmente trazemos também uma massa de consequências na sua vida. Às vezes, elas geram uma série de ciclos viciosos, como:

Raiva -> violência -> vingança -> raiva -> violência -> (…)

Estudar tais tipos de relações causais é parte primordial do estudo do samsara. É por isso que o Buda ensinou a Origem Dependente.

Ao levarmos a nossa vida adiante sem exame, inevitavelmente somos empurrados para o meio dessa massa de espinhos, trepadeiras e emaranhados e nos perguntamos em seguida porque a vida é tão difícil. É fundamental que, ao selecionar elementos, consideremos todos os elementos incidentais em sua vida que você não gostaria de ter ali, pelo menos não em suas formas atuais, mas que ainda sim foram trazidos para manter as coisas que você sente precisar em sua vida:

  • Emprego, condições opressivas de trabalho, patrões vindos do inferno;
  • Carro, longos trajetos para o emprego ou faculdade e de volta, acidentes de trânsito, serviço grátis de motorista para familiares;
  • Insegurança, desconfiança, seguros, custos de manutenção;
  • Dívidas, contas, limites bancários, baixas no mercado especulativo;
  • Concorrência, prejudicar outros, retaliação, linguagem maliciosa;
  • Raiva, ódio, desonestidade;
  • Estresse, ansiedade, viver sem tempo, preocupação, pânico, pressão alta, doenças do coração, úlcera, dor nas costas.

O passo de seleção na arte da vida leiga é a racionalização de sua vida ao ponto de pelo menos saber qual a encrenca na qual se meteu, para então decidir o que é realmente importante para você tendo isso como base. Isso provavelmente vai inspirar você a podar toda essa massa de espinhos e trepadeiras para chegar no que é realmente essencial, no que você realmente valoriza e pelo que você está disposto a pagar custos incidentais. O que sobrar pode ou não ter raízes budistas, mas será seu.

É claro que elementos incidentais podem bem ser desejáveis, e talvez inesperados ao mesmo tempo. Pode ser que você comece a praticar um esporte como observação de pássaros por causa do desafio ou ainda pelo elemento competitivo de avistar mais pássaros que seu amigo Fred, mas acaba descobrindo uma inesperada serenidade  e alegria ao fim de cada expedição. Todos começamos com certos valores fundamentais que todos deveriam gostar em suas vidas, como “saúde”, “preservar essa vida”, “felicidade” e talvez até mesmo “ser bondoso”, ou seja, trazer mais benefício que prejuízo para os outros. Sem entender as ligações causais, você não saberá especificamente o que trazer na sua vida para chegar nessas coisas; as coisas mais fundamentais são incidentais. Se você é como a maioria das pessoas, sequer tem uma ideia muito boa do que é “felicidade” ou como reconhecê-la. A prática budista pode ajudar. Se você é como a maioria das pessoas, provavelmente trouxe um monte de elementos que são até mesmo contrários a esses valores mais fundamentais, frequentemente negligenciando um enquanto busca o outro em vão. Considere como exemplo o fumo.

Em resumo, estude o samsara e esteja pronto para ajustar seu estilo de vida de acordo com o que descobrir! Se levar isso bem a sério, provavelmente vai começar a fazer um monte de mudanças nos elementos mais grosseiros que irão melhorar em curto prazo. Ao mesmo tempo, vai ficar rapidamente desencantado com muito do que hoje pensa ser importante, por causa da contabilidade daqueles custos incidentais emocionais, financeiros e de outros tipos que têm os elementos de sua vida. Então, essas mudanças vão se tornar mais graduais conforme seu entendimento vai se tornando mais refinado.

Esse estudo do samsara para os estudantes sérios do budismo vai levar em conta a maior parte dos elementos emotivos e cognitivos muito sutis ensinados em detalhes pelo Buda e seus discípulos. A Origem Dependente leva até mesmo a um entendimento muito refinado da existência e do que vem a ser o eu. Nagarjuna, o monge-filósofo do século II, escreveu: “O Vazio é Origem Dependente”, e o Buda disse: “Entender a Origem Dependente é entender o Darma.” Os elementos de estilo de vida com os quais estamos lidando aqui são as manifestações visíveis e muito grosseiras do pensamento humano e que influenciam o mesmo. É possível lidar com isso, mas ainda um desafio, dada a complexidade que envolve.

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A mente humana não mudou muito desde o tempo do Buda, ao contrário dos artefatos, instituições e convenções humanas. Muitos elementos comuns da vida moderna não existiam nem em sonho durante o tempo do Buda: coisas como cartões de crédito, comerciais televisivos, líderes de torcida, garantias estendidas e multas de trânsito provavelmente deixariam até mesmo Sariputta (o mais sábio discípulo do Buda) confuso. Eu acho que existe uma fonte de sabedoria de valor incalculável na tentativa de regular a vida moderna; um elemento de sabedoria que coloca essa rede de condicionalidade em perspectiva na vida moderna é o movimento de “simplicidade voluntária”. Não é budista em sua origem, mas, ainda sim, inclui a preocupação com o entendimento de causas e condições em jogo na busca de alcançar nossos valores mais fundamentais, do mesmo modo que o budismo, e ambos  buscam também pensar fora da caixinha. Um livro que eu tenho em mãos é “Seu Dinheiro ou Sua Vida”, que fala a respeito da simplificação de sua vida financeira a fim de ter mais tempo livre e um sentimento maior de contentamento. Não há muita coisa no livro que eu, como monge, possa usar, mas devo dizer que me arrependo por não ter seguido seu conselho com mais afinco quando era leigo. Você pode buscar no Google por “simplicidade voluntária” e provavelmente vai encontrar um monte de pensamentos atuais na internet.

Voltarei a alguns desses temas no passo de simplificação na arte da vida leiga, mas semana que vem vou escrever sobre a “rejeitar elementos”, sobretudo aqueles que o budismo claramente nos mostra que não tem espaço na vida budista, mesmo que, em si, tenham certa atração para muitas pessoas.

Traduzido por Luiz Fernando Rodrigues

Revisão: Tiago da Silva Ferreira

Links:
A Arte da Vida Leiga Parte 1
A Arte da Vida Leiga Parte 2
A Arte da Vida Leiga Parte 3

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