COMEÇOS E FINAIS: o mito budista da ascensão e desaparecimento do mundo

É comum no Ocidente ouvirmos que o budismo não fala sobre o início ou o fim do mundo. É verdade que as antigas escrituras budistas não dão destaque para o tema, mas há dois suttas em especial que formam uma espécie de “cosmologia” e “escatologia” budistas: o sutta Agañña e o sutta Cakkavatti, respectivamente. Muito mais do que meras previsões sobre o futuro ou explicações sobre as origens do universo, esses textos apresentam uma riqueza de detalhes e informações sobre o budismo que podem passar despercebidas ao leitor desatento. Neles, Buda fala sobre questões sociais e políticas, defende propriedades coletivas, justiça social, políticas públicas para os pobres, participação política das massas, dentre outras coisas. Isso se dá porque o Buda privilegia uma teoria do contrato social em detrimento do conceito de direito divino que era comum na Índia de sua época. Buda utiliza essas imagens cósmicas e apocalípticas como uma analogia para o desenvolvimento histórico da humanidade e propõe o Buda-Dhamma como um sistema que pode impedir, retardar ou até mesmo reverter a degradação da humanidade. Nesse sentido, a Sangha é a expressão máxima da ideia do Buda sobre a convivência social harmoniosa. O papel do budismo, nesse sentido, é servir de contraponto ao contínuo ciclo cósmico de destruição e reaparecimento da Samsara.

De James J. Hughes, Ph.D.

Publicado originalmente em Buddhist Perceptions of Desirable Societies in the Future: Papers prepared for the United Nations University, eds. Sulak Sivaraksa et al. IRCD: Bangkok, Thailand. 1993

A desesperada ironia de nossos dias é que nós, humanos, criamos um sistema mundial que agora tratamos como se tivesse vontade própria, um Frankenstein ameaçando destruir seu criador. As fantasias religiosas de nossos ancestrais sobre a destruição da terra com fogo ou gelo pelas mãos de deuses que julgam a humanidade, tornaram-se possibilidades reais, exceto que esses deuses raivosos são simplesmente nossos próprios sistemas ideológicos, econômicos e militares, os aspectos materiais de nossa alienação da realidade.

A prática do budismo envolve uma análise destemida das coisas, de suas causas e efeitos, dos inícios e finais no processo de devir. Para o budista, o mundo psicológico “interno” não pode ser dividido do mundo material “externo”, entender a interdependência da mente e do mundo, e todas as coisas, é central na luta budista para superar o sofrimento e trazer a paz. Uma profunda análise baseada nessas “visões corretas” nos permite ver a densa rede de “causas” e condições que compõem o sistema destrutivo de hoje, ver seus elementos individuais e seu complexo todo. Somente então podemos superar o medo, o desespero, a confusão e o dogmatismo e trabalhar efetivamente na transformação pessoal/social.

Os ensinamentos budistas sobre o surgimento e o desaparecimento do mundo foram apresentados com o único propósito de estabelecer tamanha compreensão e práticas corretas. As escrituras examinadas aqui foram delineadas com o fim de subverter visões opressivas e primitivas sobre a natureza do eu, da sociedade e da natureza e nos orientar em direção a uma visão transformadora; não eram um exercício de especulação sobre cosmologia.

O Buda rejeitou a pura e simples especulação na história do monge que exigia saber do Buda se o mundo era eterno ou não, e se uma pessoa iluminada renasce. Como a investigação do monge era meramente para entretenimento intelectual, e não uma tentativa de estabelecer “visão correta”, o Buda o comparou a um homem atingido por uma flecha. Em vez de retirar a flecha, o homem exige saber o nome, família, vila e raça do arqueiro, os componentes da flecha e se, de fato, é uma flecha. Pessoas que persistem em fazer essas perguntas, diz o Buda, como este ferido e teimoso homem, morrerão sem saber as respostas.

Sou alguém que diz: sendo o mundo eterno ou não, existe nascimento e morte, e sofrimento e angústia, e lamentação e desespero. O que ensino são os meios que levam à destruição dessas coisas.
Lembre-se, portanto, que o que eu disse, eu disse; e o que eu não disse, eu não disse. Por que não respondi a essas perguntas? Porque não trazem benefícios, nem seguem os princípios da vida santa, não levam à paz, à suprema sabedoria, ao Nibbana.
Majjhima Nikaya 63

Mas o Buda ensinou essas questões quando ajudou a estabelecer uma visão correta. O reverenciado estudioso Buddhaghosa, que sistematizou os ensinamentos budistas dez séculos depois do Buda, observa:

Enquanto uma pessoa for vaga em relação ao mundo, sobre sua origem, sobre sua cessação e sobre os meios que levam à sua cessação, não pode reconhecer as verdades.
Visuddhimaggha

Exemplos daqueles “que são vagos”, de acordo com Buddhaghosa, são aqueles que acreditam que o mundo foi criado e será destruído por um Ser onipotente ou Princípio Básico; aqueles que dizem que o mundo vem do Tempo, da Natureza ou da natureza essencial das coisas; fatalistas que sustentam que o mundo é composto de átomos determinados por causas passadas ou que pregam que tudo é resultado do acaso.

O mito budista da criação e destruição não deve ser abordado da maneira literal que muitos cristãos interpretam a Bíblia, rejeitando visões científicas e resignando-se ao inevitável Apocalipse, já que os eventos atuais são sinais da chegada do fim. Em vez disso, o Buda ensinou com grande tolerância às crenças tradicionais, adaptando a mensagem através de diferentes símbolos para se ajustar a diferentes níveis de entendimento e culturas diferentes. Seu uso da mitologia foi criativo e alegórico, projetado para criar atitudes corretas, mas não para ser discutido como história verificável. O Buda revela o humor do contador de histórias nessas narrativas, não o dogmatismo do profeta.

Temos, por exemplo, a primeira história aqui apresentada sobre a origem da crença em Deus. Ela vem de uma escritura (Digha Nikaya 1) na qual o Buda refutou os erros do Eternalismo e não-Eternalismo. O Buda explica sobre quantas pessoas sinceras, após árdua meditação e introspecção, recordam-se de existências anteriores com deuses celestiais e concluem falsamente que esses deuses são eternos ou onipotentes. A visão budista, radicalmente diferente da hindu, era que esses deuses eram apenas outra forma de nossa personalidade humana, sujeitos a todo egoísmo, solidão e ciúmes dos seres humanos, e controlados pelas mesmas leis de causa e efeito. Nesta história, Brahma é o primeiro a aparecer no universo recém-recriado, no céu mais alto, precisamente porque ele tinha o menor estoque de mérito de todos os inumeráveis seres que esperaram a destruição do universo em um estado incorpóreo. Por solidão, ele deseja companheiros, e quando eles aparecem por pura coincidência, ele conclui que é criador e governante do universo. Os novos deuses, em sua inocência, admitem que ele é realmente o criador deles. Quando os seres finalmente recaem à dimensão humana, lembram-se dessa experiência de Brahma e criam a noção de um Deus eterno e imutável. Em vez de atacar diretamente a crença nos deuses, que não desempenham nenhum papel no budismo, o Buda apenas garante que eles não são nossos criadores e senhores, ao mesmo tempo em que tira sarro deles.

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ATAQUE AOS BRÂMANES

Ao lado dessa simples anedota, o Sutta Agañña firma-se como uma história profunda e multifacetada, que vale a pena examinar muito mais profundamente. Uma coisa que raramente é apontada sobre esse sutta é que seu objetivo principal era aliviar o desconforto que dois ex-brâmanes tinham de renunciar à sua casta, elaborando uma história do mundo em que os monges e monjas do Buda e a casta guerreira (khattiya) da qual o Buda veio são superiores aos brâmanes. Muitos budistas sentem-se desconfortáveis com a força do ataque do “Buda guerreiro” contra os brâmanes e ignoram sua apreciação das origens do seu clã Sakya.

Os Sakyas eram uma federação republicana dominada por guerreiros (khattiyas), chamada “sangha”, com uma tradição democrática aristocrática comparável aos gregos, e o pai de Siddhartha Gautama era o presidente do Congresso. Nos dias do Buda, esse sistema de governo estava sendo destruído, por um lado, culturalmente, através da disseminação da casta bramânica e ideologia religiosa; por outro, militarmente, pela disseminação das monarquias imperiais. Quando o Buda estabeleceu procedimentos democráticos dentro de sua Sangha monástica, tais como reuniões regulares com cédulas secretas, subcomissões e o direito de grupos minoritários ao cisma, ele estava tentando preservar uma parte importante de sua própria tradição de clã, que considerava ideal para a conquista da libertação humana. No Agañña, o Buda diz que os monges e monjas se tornaram “filhos dos Sakyas”, filhos e filhas do Iluminado, e através dele, filhos da verdade. A Sangha monástica era uma sociedade de guerreiros espirituais, herdeiros das virtudes aristocráticas da casta guerreira (khattiya) e de seu histórico conflito com os brâmanes.

Uma anedota que ajuda a preparar o cenário para este sutta é encontrada no Ambattha Sutta. No Ambattha, um jovem erudito brâmane é enviado para determinar se o Buda realmente possui as 32 marcas físicas que um Grande Homem (Maha Purusha) deveria ter de acordo com a mitologia indiana. Após entrar arrogantemente na assembleia do Buda, o Buda comenta a falta de boas maneiras do jovem brâmane, algo como: “Alguém nunca ensinou você a se comportar na frente de homens santos?”. Ofendido, Ambattha responde: “O respeito é para os brâmanes, não por quem tem a tez escura como você, camarada!”. Ele insulta repetidamente o Buda e seu antigo clã, os Sakyas, e narra uma história para provar que os Sakyas são todos servos desrespeitosos.

Mestre Gotama, certa vez fui a Kapilavatthu para tratar de negócios do meu mestre, o Brâmane Pokkharasati, indo para o salão de reuniões dos Sakyas. Naquela ocasião um grande número de Sakyas estavam sentados sobre assentos elevados no salão de reuniões, cutucando uns aos outros com os dedos, rindo e gracejando juntos, tive a impressão de que eles só estavam se divertindo às minhas custas, e ninguém me ofereceu um assento. Com relação a isso, não é apropriado que … eles não homenageiem os Brâmanes.” Essa foi a segunda vez que Ambattha acusou os Sakyas de serem servos.

Então, o Buda decide ensinar ao garoto alguma humildade, explicando como o clã dele é descendente do filho “muito escuro” de uma escrava Sakya. “Admita que é verdade” exige o Buda, e quando o rapaz se recusa várias vezes, o Buda ameaça dizendo que sua cabeça será “partida em sete pedaços no mesmo instante”. Finalmente, o rapaz vê o deus do fogo se preparando para esmagá-lo com uma bola de ferro fundido, fica aterrorizado, se joga aos pés do Buda e grita: “O que você queria que eu admitisse?!” e admite que o Buda estava certo. Posteriormente, o garoto se abre para o fato de que o Buda é um grande homem. Mais uma vez, essa história é um exemplo de como o ensino das origens é importante para a instrução espiritual.

No Sutta Agañña, dois ex-brâmanes relatam que seus ex-clãs os insultam agora que são monges por… ‘terem se transferido para as classes mais baixas, para os andarilhos de cabeça raspada, para os ricos vulgares, para os de pele escura e aqueles que andam a pé … a sujeira dos pés de brâmane’.

O Buda observa que os brâmanes esqueceram suas origens, pois são tão humanos quanto os demais, sujeitos às mesmas falhas e tão capazes de alcançar a perfeição do perfeito conhecimento e conduta quanto as outras classes. Uma vez liberada espiritualmente, a pessoa iluminada está além e é superior a todas as castas e classes seculares. O Buda ressalta que, embora seu clã Sakya tenha sido subjugado pelo rei Pasenadi, o rei Pasenadi trata o Buda como um rei supremo. Embora os Sakyas estivessem subjugados, seu sábio Shakya-muni, conquistando a ilusão do eu, tornou-se senhor de todos.

O Buda rejeita o valor do status herdado e reitera uma meritocracia (merecimento por competência). Tanto no começo quanto no fim do sutta, ele enfatiza que as classes surgiram originalmente de uma divisão natural do trabalho, de acordo com a capacidade e de acordo com o Dharma. Mas os brâmanes se ergueram por orgulho ignorante, embora em talentos eles fossem inferiores aos guerreiros (khattiya) e renunciantes (monges).

Podemos entender facilmente por que os brâmanes criticariam a estreita associação do Buda com os pobres, os não-arianos de pele escura e as castas inferiores, mas que sua associação com os “ricos vulgares” os perturbava é digno de nota. Nos dias do Buda, à medida que o excedente agrícola crescia, e com ele as cidades, o comércio e a divisão do trabalho, uma nova classe de comerciantes emergentes estava se tornando visível, desafiando as noções tradicionais de status social e, em particular, as reivindicações dos brâmanes por status e poder com base em sua função parasita de sacrifício. Embora séculos posteriores veriam pessoas ricas de castas mais baixas serem absorvidas lentamente por castas mais altas, nos dias do Buda parece que eram uma classe progressista, enraizada na racionalidade mercantil urbana e, portanto, mais aberta à racionalidade dos ensinamentos do Buda. Em termos modernos, podemos dizer que o movimento budista era uma aliança interclasses e intercastas, liderada pelos guerreiros republicanos e uma vanguarda revolucionária de filósofos errantes e sem classes, em oposição à ascensão do brahmanismo reacionário e do imperialismo autoritário.

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A ORIGEM DO MUNDO

O mundo, na reconstrução mítica budista, faz parte de um universo que periodicamente entra em colapso e volta a se expandir em grandes bilhões de anos, como discutido mais adiante neste ensaio. No entanto, esse quadro cria um problema para a metafísica budista, uma vez que o Buda usou as ideias tradicionais de renascimento como base para a moralidade dos budistas não praticantes. (O praticante budista descarta o apego ao bom e mau carma, às noções de bem e mal e ao renascimento nos céus; e em vez disso, pratica um conjunto ético que provém naturalmente do discernimento, da abnegação e da compaixão; o insight crítico do budismo é que não existe um “eu” que possa renascer). De acordo com o budismo, se alguém não alcança a iluminação, está fadado a ser continuamente reciclado através dos diferentes reinos do neurótico mundo material, a samsara.

Mas e se todo o universo, incluindo os céus, for destruído? Não significaria que mesmo as pessoas preguiçosas acabariam alcançando automaticamente a iluminação? Não, emenda o Buda, porque pouco antes de todo o mundo material irromper-se, todos os seres renascerão em um estado incorpóreo, feixes de consciência que, embora altamente purificados, não são iluminados e começarão a andar de um lado para o outro na esteira ou circunferência do mundo material assim que o universo reaparecer do seu derradeiro buraco negro. Parece uma explicação ad hoc para uma imprevista complicação no esquema metafísico, mas se alguém acredita em tudo o que o Buda diz literalmente, provavelmente também acreditará nisso, e se outro alguém estiver procurando por alegoria, então nada disso importa.

O significado simbólico dessas incontáveis consciências incorpóreas, altamente purificadas e flutuantes na 4ª dimensão é o que chama a atenção: essa é a “natureza humana”, ou “senciência”, mas sem todas as neuroses e dificuldades, com exceção de uma: a ilusão de natureza própria. Essas energias da mente, completamente fora do universo material, convertem-se em bem-aventurança celestial como resultado de inúmeras ações boas e absorções meditativas (em oposição ao insight meditativo que leva à libertação). No entanto, eles ainda estão tão distantes ou próximos da iluminação quanto nós que estamos na dimensão humana, uma vez que ainda mantém a ideia “Estou regozijando as vibrações celestes”. Isso é central para a psicologia budista: a felicidade é agradável e é alcançável através de boas obras e meditações em tópicos como compaixão, devoção etc., mas a felicidade e o renascimento nos reinos celestial e incorpóreo não são iluminação. Mesmo depois de um bilhão de anos em comunhão com o conceito de Vacuidade num estado imaterial, sem sexo e sem hierarquia, essa pequena porção da imperfeita-ignorante mente entrará novamente em um relacionamento com o mundo para recriar mutuamente céus, sol, lua, corpo, sexo, sociedade e o mundo das dez mil coisas.

É possível fazer comparações entre os relatos de todas as culturas sobre a Criação e o processo de evolução da consciência de uma criança. A criança começa em pura unidade com a Grande Mãe, em um estado de percepção indiferenciada, em um estado escuro e incorpóreo, até que, com o nascimento no mundo, vai além de “eu sou” para “eu estou aqui”.

Então, depois que o mundo começou a re-evoluir, os seres … chegaram ao “momento presente”…

Tal qual o relato judaico-cristão, o mundo começa como um “vazio” escuro e sem forma. Mas, na narrativa budista, a luz que se espalha sobre as águas no início do processo de criação não é Deus, mas a humanidade renascida, ainda feita “de mentalidade, alimentando-se de felicidade, brilhando por dentro e viajando pelo ar”. Na narrativa judaico-cristã, o ato primordial de alienação é comer “o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal”. Para a criança, é a percepção de que sua “maçã”, o seio da mãe, é na verdade um objeto separado, embora regularmente desejado. No relato budista, também, “a queda” envolve gratificação oral, pois a força vital pura é impulsionada pela semente da ilusão do ego em provar o pudim leitoso que cobre as águas pré-históricas de nossa terra derretida e refrescante, o mesmo creme que alimentou nossos ancestrais microorganismos. À medida que os seres luminosos são vencidos pelo desejo, sua devolução começa. Em vez de o homem ser criado por Deus a partir do pó da terra para ter domínio sobre a terra, a humanidade e a natureza se recriam mutuamente como parte de um processo.

No Sutta Agañña, as mudanças no mundo material fornecem condições para o desenvolvimento e provocam mudanças e ações da humanidade. Nós, por sua vez, concretizamos o mundo. Essa interdependência é um bom exemplo da compreensão budista da “origem dependente” ou “co-evolução” (Paticcasamuppada). A origem dependente é, por um lado, a visão de que todas as coisas estão envolvidas em uma rede de causalidade bidirecional na qual todo A afeta B e por sua vez é afetado por B; por outro lado, é “simultaneidade” ou “sincronicidade”, onde A e B surgem, desenvolvem-se e desaparecem em tal interdependência que a análise dos elos causais se torna sem sentido. À medida que nossa ganância aumenta, nossa luz interior desaparece e o sol aparece, nossos corpos se solidificam à medida que a terra se solidifica.

No relato judaico-cristão, a desobediência voluntária a Deus por Adão e Eva e a ruptura da união com Ele levam à vergonhosa constatação de que estão nus, e depois de serem expulsos do abundante jardim, são punidos com a necessidade de trabalhar para sobreviver. Porém, para os budistas, a diferenciação dos corpos dos seres em bonitos e feios, masculino e feminino, surge naturalmente do desenvolvimento biológico associado ao consumo de alimentos materiais e à excreção de resíduos. Naturalmente surgem, por sua vez, vaidade, luxúria e aversão, e a abundância natural da terra diminui. As vinhas e os cogumelos colhidos sem esforço dão lugar ao arroz que precisa de sementeira, colheita e trilha.

Para judeus e cristãos, a mulher foi criada a partir da costela do homem, uma serva secundária e companheira. A “Queda do Homem” é culpa de Eva, essa mulher fraca cuja sensualidade e curiosidade a levam a ser seduzida pelo anjo rebelde a buscar conhecimento proibido. Por isso, ela e todas as futuras mulheres são punidas com dores no parto. O Sutta Aggañña, ao contrário, faz com que os dois sexos se desenvolvam simultaneamente, nenhum superior ao outro. O desejo sexual se desenvolve simultaneamente em ambos os sexos, a partir do exame mútuo, e suas primeiras expressões são vistas com repulsa pelos outros seres porque os casais estão se tratando como objetos para gratificação dos sentidos, e não como as consciências luminosas das quais eles se desenvolveram recentemente.

O Sutta salienta que o enlace sexual leva ao estabelecimento de famílias, o que por sua vez é a condição prévia para a “acumulação”, que surge à medida que o arroz se torna mais difícil de colher. Antropologicamente, sabemos que o armazenamento de grãos foi um passo crítico na evolução social, quando foi-se além da relação orgânica descentralizada do caçador-coletor e do cultivador primitivo com a natureza, em direção a uma relação agrícola mais estabelecida, na qual a natureza selvagem instável se torna um “outro” estrangeiro. O Sutta mostra a acumulação levando a uma maior deterioração da unidade orgânica com a natureza, exigindo primeiro cultivo, depois divisão dos bens comuns em lotes de propriedade privada. A propriedade privada, portanto, não é apenas o resultado da ganância, mas da relação das unidades domésticas de consumo de produção com um ambiente natural cada vez mais difícil. É interessante notar que todos os elementos das teorias antropológicas marxistas e socialistas-feministas da evolução dos modos iniciais de produção de propriedade privada, estrutura familiar e, como discutido abaixo, o Estado, estão presentes na narrativa budista, embora, naturalmente, de uma maneira pré-teórica.

Muitos comentaristas tem apontado que o relato do Sutta Agañña sobre o surgimento do governo era uma “teoria do contrato social”, em oposição aos conceitos predominantes de “direito divino” hindu. Ou seja, quando a propriedade privada leva ao roubo e, por sua vez, à censura, mentira e punição, o povo se reúne para escolher o mais sábio e capaz dentre seus quadros para administrar a justiça. O conceito budista de governo é o de uma instituição humana a ser estabelecida e mantida com o consentimento do povo, a fim de mediar conflitos sociais resultantes da competição sobre os recursos. Somente quem busca um diálogo marxista-budista, contudo, tem apontado a maneira pela qual a propriedade privada é uma das “causas” da organização da coerção, isto é, o Estado, e a partir do Estado surge a primeira divisão de classe. A diferença importante é que, no Sutta, o primeiro Estado é estabelecido democraticamente e consensualmente e a classe dominante que emerge dele é benevolente e não exploradora. É um “estado de trabalhadores” com uma burocracia privilegiada, mas sábia e justa.

É também aqui que o Buda volta à polêmica contra os brâmanes. Ele mostra os guerreiros (khattiya), surgidos primeiro, como aqueles escolhidos popularmente como os mais capazes e justos, enquanto os brâmanes só surgem depois, a partir daqueles que não conseguiam suportar a meditação na floresta e se estabeleceram na cidade para produzir e recitar livros.

Naquela época, eles (os brâmanes) eram vistos como os mais inferiores, embora agora sejam considerados os melhores.

Da mesma forma, de acordo com uma natural e “dármica” divisão do trabalho, as outras classes também surgem, e de suas fileiras, aparecem os monges errantes. No mundo secular, conclui o Buda, os guerreiros são a casta superior e os monges transcendem todas as classes comuns.

É importante enfatizar que o Buda não sugere que as qualidades das castas sejam realmente hereditárias, apenas as primeiras gerações teriam uma correspondência estreita entre habilidade e status. Mais tarde, como apontam os famosos dísticos no Dhammapada, um brâmane não nasce brâmane, mas deve se tornar um por suas ações. Somente dentro desse contexto que o Buda diz:

Os khattiya são os melhores dentre as pessoas
para aqueles cujo padrão é o clã

Qualquer pessoa de qualquer casta ou classe que trilhe o caminho das virtudes de um khattiya, exibindo justiça, inteligência, preocupação com o bem-estar e a liderança do povo, é um verdadeiro guerreiro, assim como o caminho dos renunciantes errantes (monges) está aberto a todos.

Outro ponto é que a história de Buda sobre a evolução da sociedade de castas/classes coloca “aqueles que repudiam maus hábitos e meditam em cabanas” e “aqueles que repetem as escrituras” como o segundo e o terceiro estratos na hierarquia de status, depois dos guerreiros. No entanto, os monges errantes são colocados para além de classes. Hoje, isso deve ser instrutivo para muitos monges budistas que acreditam que a meditação ou a erudição são a busca mais importante. Ambas são elementos importantes na vida monástica, mas são meramente partes do processo social revolucionário mais amplo da Sangha, a meditação e/ou erudição por si só ainda mantém a prisão na consciência de classe.

No Sutta Agañña, vemos as duas primeiras Nobres Verdades, o sofrimento e sua causa, mas somente no final do Sutta há uma sugestão das nobres verdades três e quatro, a cessação do sofrimento e o caminho para tal. Como no relato psicológico budista da cadeia de doze elementos que se reforçam mutuamente e trazem à tona a mente neurótica, – elementos que são neutralizados pelas meditações e práticas do caminho espiritual – o Sutta Agañña nos apresenta a cadeia de causalidade que leva à alienação da humanidade para com a natureza, para uns com os outros, e para com nossa sabedoria interior; e depois sugere um processo holístico e compensatório, uma contracultura, uma contra-psicologia, uma contra-economia e uma contra-política, para reverter cada elemento da espiral descendente. A coerção deve ser substituída por cooperação, propriedade privada por falta de propriedade, família e lar pela comunidade de andarilhos, hierarquia por democracia igualitária, divisão do trabalho pela igual partilha do trabalho comunitário. O uso do sexo oposto como objeto sexual deve ser substituído, relações respeitosas entre indivíduos andróginos para além da ganância e da ignorância. Em vez de viver em guerra com a natureza, essa sociedade compensadora esforça-se por estar em paz com ela, como estavam os monges da floresta, vivendo alegremente na terra. A Sangha é a personificação desse processo compensatório que nega casta, classe, sexo, raça e família; contudo, seus guerreiros espirituais vivem em um relacionamento interdependente com a sociedade da qual ela é a negação. Por um lado, eles se baseiam e são apoiados pela sociedade neurótica e, por outro, estabelecem sua influência na sociedade. Embora essa influência seja sentida em muitos níveis, é mais claramente vista na relação desses guerreiros espirituais com os guerreiros seculares, os líderes e governantes da sociedade.

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A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA

O Sutta Vajjian é outro exemplo da discussão sobre a ascensão e queda das coisas, neste caso, uma saudável democracia republicana. Os vajjianos, como os sakyans, foram absorvidos durante a época do Buda por uma monarquia em expansão. Segundo Buda, a condição mais importante para a saúde da sociedade deles e a defesa contra o imperialismo monárquico era que continuassem a:

encontrar-se regularmente em suas assembleias republicanas, reunindo-se, decidindo e dispersando em comum acordo.

O Buda repete isso como condição de saúde para a Sangha. Não se trata de uma simples democracia de confronto com conflitos irreconciliáveis entre grupos de interesse, mas sim de uma conquista de um consenso por meio da participação ampla e igualitária na tomada de decisões frente a frente. As repúblicas seculares estavam decaindo porque o crescimento da cultura mercantil e seu individualismo correspondente estavam destruindo o tecido cultural, e os brâmanes e monarcas estavam lá apenas para finalizar o trabalho e começar a costurar o novo tecido. O autoritarismo é visto como mais um passo na decadência da fibra social, o processo democrático que escolhe um governante benevolente no Sutta Agañña sobrevive de forma reduzida nessas repúblicas e, finalmente, é preservado apenas pela Sangha.

O regime recomendado aqui tem um foco no bem-estar social. Tanto a proteção das mulheres contra a violência quanto o cuidado e respeito aos idosos são vistos como centrais para a saúde social.

Por que o Buda diz que o livre acesso dos filósofos errantes contribui para a saúde social? Em um nível, existe aqui a noção religiosa tradicional de que a presença de renunciantes e sábios estabelece um alto padrão ético, desencorajando o individualismo e o comportamento anti-social. Porém, mais profundamente, no nível sociológico, esses filósofos funcionavam como uma mídia descentralizada, desafiando, criticando e educando a sociedade, e articulando necessidades e aspirações populares com base em sua interdependência orgânica para com as pessoas comuns. Na época do Buda as monarquias em expansão estavam pressionando as altamente amorfas e descentralizadas fileiras de filósofos a se unirem em grupos reconhecidos e estruturados, a fim de responder ao desafio autoritário. O Buda está lembrando seus compatriotas da força de uma sociedade aberta.

A lei e a tradição que emergem do processo democrático e consensual são a autoridade “legítima”, a estabilidade e a solidariedade de tal sociedade são o melhor ambiente para o desenvolvimento progressivo dos leigos e da Sangha. Portanto, o Buda recomenda que os cidadãos das repúblicas respeitem o estado de direito. Alguns professores budistas conservadores interpretaram essa passagem (como o cristão “render a César …”) como uma exigência de obediência a toda autoridade política. Isso ignora tanto a exigência do Buda de que examinemos criticamente todas as tradições e autoridades para decidir por nós mesmos o que é correto, como a natureza do regime pelo qual o Buda está recomendando respeito, no qual a lei é constituída com ampla participação. Embora o Buda nunca discuta explicitamente a utilidade ou a moralidade da desobediência ou revolução civil, ele descreve regimes que, por não agirem no interesse de seus cidadãos, fazem com que o público desrespeite a lei e, assim, leve à sua própria destruição.

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O RUGIDO DO LEÃO DO MONARCA QUE GIRA A RODA

Os vajjianos, sakyanos e outras repúblicas foram substituídos por monarquias autocráticas, um declínio social adicional, mas o Buda desenvolveu uma estratégia de discussão pessoal e conselhos para influenciar os reis e suas cortes. A imagem do Buda a respeito dos monarcas tradicionais era a de egoístas arrogantes que perseguiam políticas imperialistas e injustas, guiadas unicamente pela ganância, ódio e ignorância. Mas se o rei pudesse ser convertido e levado para o caminho da Sangha, ele poderia ser ensinado a governar com compaixão, desinteresse e sabedoria, e o ciclo degenerativo seria interrompido. A Sangha, isto é, como uma vanguarda revolucionária na interdependência orgânica com o povo e incorporando princípios democráticos e humanitários, poderia estabelecer sua hegemonia sobre o Estado. Tal monarca qualitativamente transformado foi chamado de dharma-raja, ou rei-do-dharma.

Quando Siddhartha Gautama nasceu, foi previsto que ele seria ou um conquistador do mundo ou um salvador do mundo, de acordo com os mitos do Grande Homem. Embora seu pai tentasse direcioná-lo à conquista do mundo, Sidarta conquistou a si mesmo. O símbolo do poder secular era a roda da carruagem de guerra, “a roda do poder”, mas o símbolo do processo de despertar do Buda era “a roda da Verdade” (dharmachakra) da qual ele era o “volante da roda” (chakravartin).

Ao subordinar-se ao caminho da verdade, o rei justo permite que o dharmachakra gire a roda do poder. Neste Sutta, o dharmachakra é simbolizado por um disco voador brilhante. É chamado e conquista pacificamente todas as terras quando o rei provê a todas as pessoas e animais do reino, ouve o conselho dos sábios, controla suas paixões e, o mais importante, garante que não haja pobreza em seu reino.

O Sutta começa com a famosa injunção do Buda de que deve-se ser um refúgio e lâmpada para si mesmo, mantendo-se firme no Dharma, e que não devemos tomar outra pessoa como nosso refúgio ou guia. Como devemos fazer isso? Observando atentamente nosso corpo e mente, a fim de alcançar sabedoria e tranquilidade. Como nos conselhos do Buda aos Kalamas, onde ele rejeita a confiança nas escrituras, autoridades e tradições e recomenda testes e decisões pessoais, o cidadão desperto é “autodeterminado”. O cidadão desperto não abdica da vontade pessoal em favor da Igreja, Estado ou Rei, embora esteja obrigado pela compaixão por seus concidadãos a se sentir responsável pelas necessidades e desejos deles. Somente com esse prólogo anarquista o Buda se lança em sua afirmação mais aguçada sobre a realeza ideal.

“Certa vez, bhikkhus, houve um monarca chamado Dalhanemi que girou a roda, um monarca justo que governou de acordo com o Dhamma; conquistador dos quatro pontos cardeais, que estabeleceu a segurança no seu reino e que possuía os sete tesouros (…) Ele governava tendo conquistado esta terra circundada pelo mar, sem bastão ou espada, através do Dhamma (…)”.
Um homem espiritual e sábio, ele se aposenta no final de sua vida para viver como monge e instrui seu filho nas maneiras pelas quais ele pode merecer o símbolo de governo legítimo, a Roda da Verdade, uma vez que esta não pode ser herdada.

Um dever é prestar muita atenção às necessidades dos diferentes setores da população. Dois setores. Os “religiosos” e os “animais” são grupos que raramente são abordados pela política de governo, pelo menos no Ocidente. O governo do rei indiano Asoka, o modelo de um dharmaraja nos últimos dois mil anos, fornece alguns exemplos de implementação de tais políticas. Um departamento de assuntos religiosos foi estabelecido por Asoka para prestar assistência a todas as religiões de maneira mais ou menos igual e a população foi exortada a interromper a caça e o abate de animais.

O rei é instado neste sutta a dialogar com pessoas espirituais a fim de obter seus conselhos e listá-los em suas ideias para o bem-estar social, um ideal que se encaixa na estratégia do relacionamento rei-Sangha discutida acima.

Mas o setor mais importante para o rei cuidar é o dos “pobres”, a quem o rei deve dar prosperidade. Enquanto o Sutta Agañña coloca mitologicamente o desenvolvimento da propriedade privada como uma das cadeias de causas que levam ao crime, ao estado e à sociedade de classes, este Sutta retrata o papel mais importante do Estado como por exemplo a melhoria, se não a eliminação, da pobreza através da redistribuição de propriedades e políticas sociais que impeçam o empobrecimento dos diversos setores. O dharma-raja, assim, estabiliza ou até mesmo inverte o processo degenerativo.

O rei que governa dessa maneira demonstra ser capaz de estabelecer uma hegemonia não violenta em todo o mundo, onde ele não tira proveito do imposto ou tributo extraídos, exceto para estabelecer altos padrões éticos entre seus subordinados.

Mas, finalmente, chega um rei que em vez de se apegar ao dharma sem ego, procura governar com suas próprias ideias. O único erro que ele comete é permitir que a pobreza se desenvolva, o que leva ao roubo. Em vez de adotar um plano de ação preventivo para eliminar a pobreza – a causa – ele fornece bens aos infratores, recompensando-os na prática por cometer crimes. Quando ele vê que essa abordagem “liberal” apenas encoraja mais crimes, ele se volta para a política de execução “conservadora”, que só tem o efeito de incentivar crimes violentos.

À medida que a sociedade se desintegra lentamente geração após geração, a expectativa de vida diminui e o comportamento imoral se torna mais comum. Todos os laços religiosos, familiares e políticos perdem sua legitimidade e não são mais respeitados. Até os membros familiares se odeiam.

O apocalipse que se segue é o fim oposto do ciclo que começa no Sutta Agañña. Há uma tentação natural em comparar esse relato apocalíptico com os sinais ameaçadores de guerra nuclear e biológica e a piora das condições do meio ambiente, como muitos cristãos fazem. Embora essa comparação seja delineada aqui, deve-se ressaltar que as visões religiosas do fim do mundo mostram muitas semelhanças que provavelmente têm mais a ver com a vida e a psicologia das pessoas pré-industriais do que com precisão profética. Em verdade, não existem muitos modos alternativos de destruição fora da guerra, pragas, fomes, secas, terremotos, inundações e flagelos de várias criaturas, portanto o fato de existirem hoje ameaçadores equivalentes modernos não deve nos surpreender. O que deveria ser especialmente evitado pelos budistas é a tendência entre os fundamentalistas religiosos de acreditar na inevitabilidade de um mundo cada vez mais maligno que levaria à aniquilação certa. Primeiro porque as guerras, doenças, destruição ecológica e fome que o século XX já testemunhou, mais do que cumpriram qualquer “conteúdo profético” do sutta. O que talvez seja valioso nesse contexto é a maneira como o sutta mostra que a crise mundial geral é a condição prévia para o surgimento de uma nova era. Em segundo lugar, o budismo ensina alegorias a fim de nos despertar para a ação sábia e preventiva imediatamente necessária para interromper nosso karma e quebrar os ciclos neuróticos, não para incentivar o derrotismo. Essa era a abordagem brâmane ao pregar obediência ao karma social e pessoal, enquanto a abordagem budista é alcançar a liberdade existencial do nosso karma, autodeterminação altruísta.

No entanto, a imagem constituída de uma guerra de sete dias, envolvendo o mundo inteiro e destruindo toda a civilização certamente traz à mente o breve, porém destrutivo rumo que uma próxima guerra mundial seguiria. Textos Mahayana posteriores que falam de um período de doença de sete meses, espalhado por seres não humanos (micróbios?). Lembram os efeitos que uma guerra nuclear ou bacteriológica teria. A seca e a consequente fome, que duram quase oito anos, lembram similarmente as previsões atuais do caos ecológico em todo o mundo depois de uma guerra nuclear “limitada”, onde o sol desapareceu por meses e anos debaixo de poeira radioativa, causando um “inverno nuclear”, terra irradiada, plantas e animais inférteis, e a queima de gases que nos protegem dos raios solares.

Os sobreviventes são aqueles que escaparam para “viver em cabanas na selva, em fendas nas montanhas”, pois os poucos que poderiam sobreviver à guerra nuclear teriam que estar em abrigos profundos e em áreas distantes do que havia sido a civilização. À medida que emergem de suas cavernas “eles se abraçarão e terão uma só mente, confortando-se e dizendo: ‘Oh, mortal! Você ainda está vivo!'”. Eles refletirão sobre seu estado decaído e o caminho que leva até lá, e prometerão fazer o bem. Esse compromisso é o ponto de virada de uma nova tendência ascendente, à medida que a humanidade reconstrói o mundo e a sociedade e, ao mesmo tempo, desenvolve-se espiritual e moralmente.

O resultado, depois de muitas gerações, é um mundo pacífico unido, cujos cidadãos desfrutam de longevidade e boa saúde. O mundo será rico e bem povoado. Curiosamente, o Buda descreve um mundo com 84.000 cidades tão próximas que uma galinha pode voar de uma para a outra. Buda comenta que podemos pensar que esse mundo é como o inferno da “Profundidade Sem Ondas”, esmagado por bilhões de seres humanos como se estivesse no fundo do oceano. Mas, em vez de uma expansão urbana superpovoada de mega-cidades poluídas, nesta visão futura, o Buda diz que a humanidade penetrará no mundo “tal como uma selva é por juncos e juncos”, ou seja, uma interdependência ecológica descentralizada.

Na teologia cristã há um debate há pelo menos cem anos e, de certa forma, ao longo de toda a história cristã e judaica sobre se o milênio, a era utópica, precederá ou será causado pela vinda do Messias. Os “pós-milenialistas” americanos, acreditando que Cristo só voltaria para julgar o mundo depois que a humanidade tivesse conseguido viver em paz e justiça por mil anos, haviam se tornado reformadores sociais trabalhando pela abolição da escravidão, direitos para mulheres e trabalhadores, e pacifismo. Os pré-milenialistas, por outro lado, viam os males do mundo e o Apocalipse vindouro como inevitáveis e, em certo sentido, bem-vindos, já que anunciavam a vinda do Salvador para fundar seu Reino. (Alguns teólogos da libertação adotaram outra abordagem e dispensaram totalmente a interpretação sobrenatural da Vinda de Cristo, acreditando que o espírito ressuscitado de Cristo no povo que constrói o reino dos céus na Terra por meio de ações inspiradas é o retorno do Messias).

O Cakkavatti é a única escritura budista primitiva que discute a vinda do próximo Buda, Metteya, ou um milênio vindouro, e é enfaticamente pós-milenar. Após inúmeras gerações de reconstrução ética, social e material das cinzas do Apocalipse, essa evolução social progressiva é limitada pela vinda de um proeminente rei que gira a roda, simbolizando o restabelecimento do governo perfeito, justo, participativo e socialista retratado no começo do Sutta. Somente então, como resultado natural desse processo histórico, o próximo Buda surgirá. “Ele” reunirá uma nova ordem religiosa, à qual o rei se unirá, entregando seu palácio aos pobres, aos sem-teto e aos sacerdotes. Simbolicamente, o Buda vindouro traz o “declínio do estado”, os antigos aparatos administrativos são entregues aos pobres e aos renunciantes religiosos.

Essa escritura, por mais limitada que possa parecer como potencial combustível para o messianismo popular e a revolta mileniarista, tem sido a base de muitas revoltas camponesas, lideradas por aqueles que afirmam ser o rei justo Sanka ou o próprio Buda Metteya, que veem para destruir o mal e estabelecer a nova ordem. Os exemplos mais famosos são as várias sociedades secretas chinesas insurrecionais, como a “Sociedade dos Lótus Branco”, que lideraram revoltas nos últimos mil anos com base, em partes, nos mitos de Metteya. Mais recentemente, o governo socialista budista de U Nu, primeiro ministro do Mianmar nos anos 50, fez apelos diretos a esse sutta e a outras escrituras budistas para defender suas reformas sociais e a validade de conceitos marxistas.

A advertência que abre o sutta também o fecha. Mas duas novas idéias são adicionadas: o significado da riqueza e do poder para um budista. Abraçar o mundo inteiro com uma mente calma e compassiva é a verdadeira riqueza, não o imperialismo nacionalista mesquinho que pilha riquezas de outras nações para que a raça dominante possa desfrutar do esplendor material. O verdadeiro poder é a destruição da ganância, do ódio e da ignorância, e o estabelecimento de si mesmo na libertação e no discernimento mental, em vez de dominar os outros. O Buda, assim, conclui este “tratado político”:

Eu não considero que exista um outro poder tão difícil de ser conquistado quanto o poder de Mara (que representa a ilusão). É apenas acumulando estados benéficos que o mérito se incrementa.”

O sistema que nos oprime é baseado e apoiado pela ilusão, da ilusão interior do ego à ignorância alienada em que vivemos sobre o nosso mundo social e político. Quem quer entender a abordagem budista da política deve ser destemido o suficiente para enfrentar e desvencilhar-se das ilusões nas quais vivemos.

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BUDDHAGHOSA SOBRE O FIM

Buddhaghosa, no século V a.C, foi um dos monges mais antigos, e certamente o mais importante, a tentar uma sistematização completa da psicologia, metafísica e filosofia dos primitivos textos budistas em Páli. Seu Visuddhimaggha (o Caminho da Pureza) continua sendo um livro didático para os budistas Theraveda nos dias de hoje. Ele também sintetiza comentários da época dele para ilustrar as fontes originais, como nos adendos ao Sutta Agañña a respeito de órgãos genitais e milho cozido. A maior parte da seção reproduzida aqui sobre a destruição do universo e sua recriação cíclica parece ser uma reconstrução das raras discussões sobre esse assunto nas escrituras originais.

A cosmologia budista tem dois ciclos, o ciclo social descrito nos Suttas Agañña e Cakkavatti, e o ciclo astrofísico elaborado por meio de Buddhaghosa. Esse ciclo astrofísico geralmente corresponde à noção moderna do Big Bang, o universo se expande por bilhões de anos e depois se contrai até um ponto de completa atomização e unificação de toda a matéria/energia do universo. Depois, o buraco negro do plasma nuclear explode novamente para recriar galáxias, sóis e planetas. O comentário reproduzido aqui é uma descrição do período de contração em que os humanos começam a se preparar para a destruição que se aproxima, meditando em um estado incorpóreo.

Buddhaghosa faz a pergunta interessante: como pessoas sofrendo com a seca causada por distúrbios geofísicos e a crescente proximidade de estrelas solares podem meditar? Porque eles são

seres celestiais com conhecimento prévio que viram o fim do universo e o novo nascer (e) viajam para cima e para baixo entre as assombrações dos humanos, com as cabeças nuas, cabelos desgrenhados, rostos piedosos, enxugando as lágrimas com as mãos, com desordenadas roupas de tecido tingido, o aviso do fim.

Esses benevolentes extraterrestres, disfarçados de lunáticos histéricos com avisos do tipo “O fim está próximo”, tantas vezes satirizados na imprensa, convencem os terráqueos a acelerarem sua evolução ética e espiritual, a fim de escaparem para o estado incorpóreo.

Talvez então possamos traduzir de maneira fantasiosa o conto de Buddhaghosa como sendo o de um plano de evacuação intergaláctica para formas de vida inteligentes, nos transportando.

No pensamento Mahayana, o Bodhisattva unifica a energia “feminina” da sabedoria profunda (percepção do Vazio, interdependência e não-eu) com a energia “masculina” da total dedicação compassiva à libertação dos seres. Sem a integração de ambos, a libertação é impossível, novamente um lembrete para estudiosos, filósofos e professores que não meditam; e meditadores que não analisam e nem se envolvem com a sociedade e o mundo.

Vemos a ênfase em seguir uma carreira ativa neste conjunto de versos, em nítido contraste com a linguagem pró-renunciadora das escrituras anteriores. Esses versos recomendam que nos tornemos professores, líderes, ministros, cientistas, artesãos, médicos e até sacerdotes, a fim de ajudar nossos semelhantes. Os versos apontam que o Bodhisattva, como um ator habilidoso, pode transformar o engano em uma ferramenta de libertação. Ela/ele pode manifestar todos os comportamentos de todos os seres vivos. Ela/ele pode praticar atos imorais sem causar dano ou mau karma, e até mesmo a serviço da instrução. Os bodhisattvas se dedicam a seitas estranhas, a fim de superar seu dogmatismo, ou seja, se infiltram em outras organizações e estabelecem a hegemonia ideológica de sua própria visão não-sistemática e de sistema aberto. Eles podem mostrar-se doentes ou mortos e podem “demonstrar a queima da terra nas chamas consumidoras do fim do mundo, a fim de demonstrar impermanência”. (Lembrando os “ataques” que agora são uma forma comum de protesto antinuclear no Ocidente.)

Mas esta seção é especialmente apresentada como um pós-escrito encorajador às histórias do Apocalipse social e universal. Pois Vimalakirti nos aconselha sobre o que devemos fazer durante os flagelos recorrentes que devastarão a terra. Durante a fome, precisamos “nos tornar” comida e bebida, pois somente quando as pessoas são alimentadas elas podem ser ensinadas e praticar o Dharma. Devemos nos tornar remédios em tempos de peste e tesouros para os pobres. Durante as guerras, devemos apresentar a não-violência às centenas de milhões de seres vivos. Mesmo antes de começarem.

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CONCLUSÃO

O que podemos aprender hoje com o exame desses mitos antigos que vão nos ajudar a brecar nosso apocalipse? O mais importante é que encontramos uma descrição de uma cadeia de causalidade envolvendo processos psicológicos, sociais e materiais. Esses elementos interdependentes são vistos como parte de uma série de eventos sem começo ou fim, sem uma “Causa Primeira”. O Buda, como cientista do sofrimento humano, examinou o mundo ao seu redor e, ponto a ponto, identificou os entrelaçados elementos do “sistema” (samsara) e elaborou um “sistema de compensação” para neutralizar cada um desses elementos. A natureza desse sistema de compensação pode ser discernida tanto na instituição da Sangha quanto nas escrituras.

O sistema de contrapeso do Buda procurou substituir a vaidade pela simpatia, o ódio pela compaixão e a ignorância pela análise e discernimento. Mas ele também considerou a possessividade e a propriedade em si como poderosos reforços de nossa neurose, a serem substituídos por simplicidade voluntária e compartilhamento comunitário. A divisão do trabalho e sua resultante sociedade de classes, alienando-nos de nossa experiência humana comum, foi substituída pelo compartilhamento de todo trabalho em uma sociedade sem classes, como era “no começo” e na Sangha. Em vez de ‘homens’ e ‘mulheres’ estereotipados socialmente se relacionando como objetos sexuais, dentro das relações de propriedade da família patriarcal, o Buda procurou incentivar relações igualitárias respeitosas entre nossas verdadeiras naturezas humanas que não são nem masculinas, nem mulheres (Procure por Feminismo Budista, também do autor).

Todas as formas de apego à família, classe, raça ou nação deveriam ser substituídas por uma identificação compassiva com toda a vida senciente, e o corolário material de tal compaixão, uma sociedade mundial de amplas famílias, sem classes, sem raça, sem nações. A exploração da natureza deveria dar lugar à interdependência ecológica, um passo atrás em direção à fácil abundância de nossos dias de colheita de cogumelos e videiras.

A maioria dos budistas ao longo da história ficou cega à natureza radical dos ensinamentos de Buda graças ao idealismo filosófico incentivado pelas elites dominantes. Preferem não falar desse guerreiro social anarquista Shakyan que ameaça esmagar a cabeça do brâmane e critica seu patrocínio. Os reis, as classes dominantes e os sacerdotes que dominaram o budismo suprimiram o Buda democrata, anti-imperialista e anti-clerical. Os opressores tentaram ajustar o Buda de volta a um molde divino, além dos interesses e atividades humanos. Mas o Buda era um humanista revolucionário, um símbolo e professor da libertação do potencial humano; ele exortou as massas a renunciarem às crenças primitivas de um Deus Supremo, crenças que incentivam o poder autoritário.

As escrituras budistas retratam ao menos três esquemas políticos diferentes. O mais alienado e alienante é o regime autoritário, que apoia uma elite privilegiada contra os pobres explorados, engajando-se em guerras expansionistas e imperialistas e apoiado por forças racistas, nacionalistas e patriarcais de reacionarismo cultural, como os brâmanes. O segundo é o regime de bem-estar social, com participação popular limitada, guiada por uma vanguarda em massa de intelectuais progressistas, como a Sangha. Esse regime pode interromper o processo degenerativo. Mas a forma mais alta da política é a descentralizada democracia participativa, com uma forma de política corpo a corpo, onde há tomada de decisão igualitária face a face, levando, eventualmente, a um “enfraquecimento do Estado”.

No período de reconstrução do [sutta] Cakkavatti, nenhum papel explícito é mencionado para o clero na orientação do povo em estabelecer a Nova Ordem. O processo de re-despertar é um fenômeno social e espiritual de massa que, por si só, leva ao restabelecimento da religião pura. No regime autoritário, os intelectuais religiosos e seculares estão do lado das elites e do estado contra as massas. No regime de bem-estar social, uma porção poderosa da liderança intelectual da sociedade se alinha com as massas para influenciar o estado. Mas na sociedade verdadeiramente democrática, a divisão entre trabalho intelectual e manual, líder e liderado, é eliminada. Nós, cidadãos budistas e aspirantes a Bodhisattvas, devemos examinar profundamente as tendências sociais e materiais de nossos dias, identificar e se envolver com as forças que nossa visão progressista aponta, não permanecendo separados das massas, seja como budistas ou intelectuais.

A mudança social não é uma distração do crescimento espiritual, mas a disciplina dentro da qual crescemos. Se somos meramente “meditadores em cabanas de folhas” ou “repetidores das escrituras”, ainda fazemos parte do problema, sabedoria sem compaixão. Por outro lado, aqueles que se envolvem em mudanças sociais sem uma base espiritual, sem uma apreciação humilde da imagem da Grande (Explosão) e de uma visão de mundo não dogmática, são, na melhor das hipóteses, compassivos sem sabedoria. Nosso desafio é sair dessas velhas ilusões e estruturas do status quo, como o primeiro guerreiro insatisfeito fez no Sutta Agañña para encontrar a verdadeira libertação na construção de um mundo e humanidade despertos.

Texto original: http://www.changesurfer.com/Bud/Begin.html

Tradução: Tiago da Silva Ferreira

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