Sexo, pecado e budismo

Neste texto, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre o papel do celibato monástico e da manutenção da instituição monástica, discorrendo sobre como o sexo e o desejo sensual são encarados no budismo.

De Bhikkhu Cintita Dinsmore

Um complemento a Sex, Sin and Zen, de Brad Warner

Brad Warner escreve perto do começo do seu livro recente, Sex, Sin and Zen (Sexo, Pecado e Zen): “Pessoalmente, conheço apenas o zen, então é somente dele que falarei aqui”, o que parece correto, mas acrescenta: “Nós, zen budistas, tendemos a ser tão arrogantes que chamamos aquilo no que acreditamos de ‘budismo’ sem especificar a escola. Também farei um pouco disso. Lidem com isso”. O que se segue é minha tentativa de lidar com isso.

Fiquei preocupado com algumas afirmações feitas pelo Sensei Warner sobre o budismo geral ou “primitivo” que são enganosas ou simplesmente erradas, e outras afirmações que são verdadeiras para o Soto Zen japonês em específico, mas que o leitor pode facilmente se enganar se aplicar a todas tradições em todo país budista. Não acho que ele leve em conta o quão peculiarmente único o budismo japonês se tornou em meio ao budismo asiático, mesmo em comparação a, digamos, o zen chinês ou vietnamita. Eu mesmo fui um sacerdote zen e me confundi a esse respeito por muitos anos, então sei que o Sensei Warner não é o único a ter essa dificuldade. A distinção importante que deve ser feita aqui é entre o budismo japonês contemporâneo e o resto do budismo, contemporâneo e pré-contemporâneo. Ao escrever ‘budismo’ sem maior qualificação, quero dizer “quase todo o budismo fora do Japão contemporâneo”.

Meu propósito aqui é deixar claro o que é verdadeiro a respeito do budismo. Isso vem com um extra: num sentido real a sexualidade é um tópico muito mais interessante no budismo do que no budismo japonês contemporâneo, por causa de um aparente paradoxo: por um lado o budismo – e isso também se aplica ao budismo japonês contemporâneo – tem uma atitude muito liberal a respeito da sexualidade. Como Sensei Warner observa, não há pecado no budismo! Muitos ocidentais consideram isso muito estimulante e esse é um tema importante no livro do Sensei Warner. Por outro lado, o budismo – mas isso não se aplica ao budismo japonês contemporâneo – tem uma forte tradição de celibato monástico, que persiste desde o tempo do Buda até os dias de hoje. Então a questão que realmente interessa é: por que o budismo é tão liberal a respeito da sexualidade para os leigos e apesar disso a nega totalmente aos monges e monjas? Quase todos os budistas ocidentais ficam desconcertados com isso. Enquanto na Ásia isso é aceito como parte da natureza do budismo. A resposta nos diz muito não somente a respeito do budismo, mas também a respeito do entendimento budista da sexualidade humana. Infelizmente, essa questão fascinante se encontra bastante fora do escopo do livro do Sensei Warner ou de sua experiência.

Não há pecado no budismo. Sensei Warner faz essa afirmação acertadamente. Pecado é geralmente considerado nas religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islã) como um tipo de insulto a Deus, uma violação daquilo que Deus exige de nós. Como tal, um pecado encerra em si gravidade bem maior do que simplesmente fazer algo que prejudica outra pessoa ou algo de que possamos nos arrepender por ter feito. De fato, pecados podem ou não corresponder a ações que causem malefício em si, de modo geral. Atos homossexuais, masturbação, fazer para si um ídolo ou não manter o Sabá são ações que, em geral, não prejudicam outros, mas são por vezes consideradas pecados de todo modo. Mesmo alguns pensamentos são pecado, como cobiçar a casa, a vaca ou a esposa de seu vizinho. O budismo não tem nenhum conceito remotamente semelhante ao do Pecado; não poderia, dado que não faz referência a um Deus cujas exigências poderíamos violar. Ainda sim, o budismo tem uma base de princípios éticos claros e fortes e estes precisam ser esclarecidos para entender a relação entre o budismo e o Sexo.

A ética budista, grosso modo, é baseada em dois conceitos chave e seus opostos: não-malefício e habilidade. Algumas ações trazem malefício no sentido de causar sofrimento ou desarmonia, algumas outras não trazem malefício, são benéficas, no sentido de que trazem coisas boas como alegria e paz. A habilidade se fixa nos nível intencional, no nível de nossos pensamentos. Por exemplo, a ira é considerada inábil, enquanto a equanimidade é considerada hábil. Enquanto o não-malefício se trata do externo, a habilidade se trata do interno. Sim, a ética budista também se estende ao que pensamos; aliás, a ética budista se trata principalmente a respeito disso. Isso pode parecer invasivo e evocar imagens de uma polícia do pensamento em marcha, mas continue aqui e verá porque isso é importante.

Um terceiro conceito complementar também deve ser mencionado: preceitos são parâmetros para nos ajudar a reconhecer o que é prejudicial ou inábil, sobretudo quando não se consegue tirar uma conclusão e auferir o possível malefício ou habilidade de uma dada ação. Eis uma lista curta dos Preceitos mais frequentemente seguidos, reconhecíveis em todos os países budistas:

  1. Abstenção de matar seres vivos. (Isso inclui insetos, etc. além de humanos.)
  2. Abstenção de tomar o que não foi dado.
  3. Abstenção da má conduta sexual
  4. Abstenção de linguagem falsa.
  5. Abstenção do consumo de álcool e drogas que causam negligência.

No Dhammapada, o Buddha diz:

Evitar todo mal,

Fazer o bem,

Purificar a mente,

Esse é o ensinamento de todos os budas.

 

Evitar todo mal se refere a seguir os preceitos; fazer o bem, a beneficiar outros e purificar a mente, ao aprendizado do pensamento hábil. Esse pequeno verso nos lembra dessas três características da ética budista.

 

Young Novice Monks First Walk for Alms in  Rural Nakhon Nayok, Thailand. © Lee Craker
Monges noviços pedem esmolas em Nakhon Nayok, Tailândia.

Uma consequência imediata desse modo tão aterrado de pensar sobre a ética é que o budismo não tem proibições arbitrárias ao que chamaremos de “crimes sem vítima”, tais como fazer curtimento com couro de porco, homossexualidade ou atos sexuais “antinaturais”, porque não causam prejuízo em si e não são necessariamente inábeis. Má conduta sexual na terceira regra aqui apresentada se refere, por exemplo, a coisas como atos de adultério e sexo com uma criança, atitudes que violam as relações humanas estabelecidas, ou seja, circunstâncias nas quais a sexualidade quase sempre leva a resultados prejudiciais. Não se refere a aspectos do sexo em si, como normas sociais sobre a forma correta de se praticar o sexo, desde que esses aspectos não vitimem ninguém. No budismo o ato sexual em si nunca é considerado como um malefício ou algo inábil; o problema está, mais propriamente, no fato de haverem modos que causam malefício ao se fazer sexo, e também nas muitas camadas de pensamento inábil nas quais o sexo está envolvido, como você, leitor, deve provavelmente já estar ciente, se já teve alguma experiência. O budismo nos ajuda a entender de onde surgem os reais problemas para que possamos evita-los no futuro. É nisso que reside a ética budista.

A Ética Budista tem por Base a Escolha Pessoal. Muitas pessoas, nas fés abraâmicas, assumem que sem Deus não pode haver moralidade. Se não tem um Deus olhando, argumentam, que incentivo teríamos para seguir a ética para começo de conversa? Em contraste, foi observado que países budistas da Ásia, onde Deus é em grande parte desconhecido, tendem a ter as menores taxas de criminalidade do mundo! Eu certamente pude observar que o Mianmar, que é um país majoritariamente budista, apesar de empobrecido por anos de governo militar é ainda sim um país com bem pouco crime, bem diferente dos meus Estados Unidos.

A verdade é que as pessoas em toda parte tem um desejo inato de fazer o bem! Ao ensinar budismo e meditação em prisões, descobri a vontade de fazer o bem nos mais ignóbeis rufiões; o problema com eles é que seu pensamento se desviou, quase sempre de modo previsível, dadas as circunstâncias nas quais cresceram. O budismo expõe a sabedoria, não precisa fornecer a motivação. O comportamento ético no budismo vem da escolha pessoal, ou seja, do voto pessoal. Sendo um budista, você faz o voto de seguir os preceitos, ou não; você faz o voto de beneficiar a outros ser um alicerce de sua vida, ou não; você faz o voto de desenvolver habilidade em pensamento e ação, ou não. Acontece que o grau do voto depende bastante de sua sabedoria, apoiada pelos ensinamentos budistas ou outras fontes, mas também depende das obrigações conflitantes de sua vida e de alguns valores pessoais muito humanos. Até onde vai seu entendimento, as pessoas invariavelmente querem fazer a coisa certa, que é o que é benéfico e não o mal.

Outra coisa é que a ideia de que há pessoas boas vs. pessoas más é estranha ao budismo. Se há uma luta entre o bem e o mal, está apenas dentro de nossos próprios corações, onde o hábil e o inábil competem. Somos diferentes segundo o malefício e benefício que fazemos, segundo a inabilidade ou habilidade de nossos pensamentos e segundo o esforço que colocamos no aperfeiçoamento de nosso caráter, incluindo a força de nossos votos, mas todo mundo, no fim, está na mesma estrada; estamos fazendo o melhor que podemos, e como em todas as coisas nessa vida, alguns de nós estão à frente dos outros por conta de talento ou oportunidade. Aquele cara logo atrás de mim no caminho provavelmente causa mais mal no mundo do que eu, mas para mim não é a coisa hábil dar meia volta e brigar com esse delinquente, mas sim auxiliar esse companheiro de viagem ao longo do caminho. O cara na minha frente no caminho provavelmente traz mais benefício que eu, mas para mim o hábil a se fazer não é puxar o tapete desse bom moço, que está sem dúvida tentando ganhar o Prêmio Nobel da Paz, mas me regozijar no sucesso de alguém que pode ser uma inspiração para mim.

Devido ao fato de que as pessoas diferem nos votos que desejam assumir, há opções. Por exemplo, algumas pessoas seguem os cinco preceitos a maior parte do tempo, e um conjunto maior de oito ou nove ou dez preceitos em outros momentos, às vezes um dia por semana. Eu sou um monge Theravada, e os monges Theravada assumem um conjunto de 227 preceitos, o tempo todo, pra sempre! De modo semelhante pode ser que alguns, para desenvolver a habilidade em suas vidas, meditem religiosamente e estudem ensinamentos budistas, enquanto outros simplesmente vão tentar ser mais ponderados e atentos em suas atividades diárias. É por isso que existem monges e monjas no budismo; eles escolheram se imergir completamente na profundidade total da prática. Essa é uma escolha incomum no budismo ocidental, mas muito comum de fato em alguns países como o Mianmar.

Resumindo, o budismo não é uma religião uniforme, na qual se espera que todos tenham o mesmo comportamento, entendimento ou prática. Ela fornece escolhas, mas acima de tudo os meios para investigar completamente essas escolhas, para que sejam tomadas com a devida ponderação na base da sabedoria budista.

Pensamentos e Ações Hábeis e Inábeis. Eu ainda não escrevi muito sobre a definição de habilidade. O budismo, no fundo, fala a respeito da perfeição de caráter. O humano perfeito é, resumidamente, virtuoso por excelência, alegremente imperturbável, e de uma sabedoria penetrante e sem nenhuma noção de ser uma pessoa separada, mas ainda sim é confiante em todas as atividades. Ainda, não são muitos os que se sentem assim, mas o budismo consegue ao menos levar as pessoas nessa direção, aliás, de modo mais resoluto e mais intenso quanto mais cresce sua convicção na sabedoria do budismo. Todas essas características do caráter humano aperfeiçoado surgem com a maestria na habilidade em viver, nos pensamentos e, com isso, nas ações. É por essa razão que o budismo gosta de falar tanto sobre o que é hábil e o que é inábil, e sobre Karma, que no budismo significa “Ação Intencional” (realmente o oposto de destino).

É fácil reconhecer a necessidade da Habilidade em nossas vidas. Se temos o hábito de beber até cair e acordar com uma ressaca dia após dias, provavelmente não estamos sendo muito hábeis. Se comemos junk food com frequência e pesamos 140 quilos, provavelmente não estamos sendo muito hábeis. Se acabamos noivando quatro pessoas diferentes para casar, provavelmente não estamos sendo muito hábeis, a menos que sejamos mórmons. Se estamos sempre de mau humor, se afastamos as pessoas por ficar com o rosto muito vermelho e já tivemos dois ataques cardíacos, provavelmente não estamos sendo muito hábeis. Se apoiamos uma guerra distante por uma razão ideológica abstrata, uma guerra que não tem nenhum benefício claro e que causa a perda de centenas de milhares de vidas inocentes, não estamos sendo muito hábeis. O budismo pega essa ideia de Habilidade e refina ao ponto de ser capaz de aconselhar como princípio quase todos nossos pensamentos e atividades, mesmo os menores, se assim permitirmos.

Pensamentos Inábeis, em resumo, são reconhecíveis do seguinte modo:

  1. Causam estresse. (Eis o famoso dukkha, ou sofrimento).
  2. Distorcem a realidade.
  3. Tem por base a cobiça, a aversão ou a ilusão.
  4. Quando ocasionam ações, essas ações normalmente causam algum nível de malefício.
  5. Subvertem o desenvolvimento de um caráter perfeito.

Um pensamento hábil não tem nenhuma dessas propriedades. Como dá pra ver, habilidade (e com isso, ética) é entendida de modo bastante refinado e psicológico. Não tem relação com a imposição de julgamentos arbitrários nem mesmo normas sociais aos seus comportamentos ou ao de outros. Também não tem relação com culpar você por seus pensamentos e ações inábeis; na verdade, a culpa em si é reconhecida no budismo como um tipo de pensamento inábil, uma forma de aversão. Livre-se dela. Habilidade tem mais a ver com uma base para a compreensão de sua própria mente e como ela encontra percalços, e com essa compreensão fazer escolhas mais racionais para o bem de todos.

Na verdade, o significado da prática budista vai bastante na direção de se tornar profundamente e continuamente ciente de quando cada uma dessas cinco propriedades está presente e quando está ausente. A prática de meditação é de valor incalculável para esse fim. Ela serena sua mente até que seja tal como o cristalino lago de uma cachoeira na floresta, no qual se pode ver cada ondulação da água, cada peixinho ou pedrinha. Conforme sua prática, e com isso sua sabedoria, se aprofundam, você começa a entender que o que liga esses aparentemente desconexos fatores do pensamento inábil é o ego, a ilusão persistente de que você é um “eu” separado. Em nosso egocentrismo subjaz nossa ansiedade, o modo que percebemos incorretamente as coisas ao buscar por vantagem pessoal e como ficamos confusos, o surgimento de cobiça e aversão a serviço do ego, as ações danosas que, a partir disso, causamos, e nossa insistência em todos esses fatores presentes em nosso caráter ao nutrir tais pensamentos e agir com base neles repetidamente.

Olhar para sua própria mente é como conhecer aquele cara que veio morar com você no seu apartamento, que pode se apresentar como uma cara legal de início, mas que acaba se provando um babaca. Depois de um mês você pode listar todos os seus defeitos em detalhes, dos quais ele invariavelmente não tem a mínima ideia. Depois de dois meses você está querendo expulsar o cara. A diferença é que, ao olhar pra sua própria mente, o cara é você! Você só não tinha notado seus defeitos antes, ainda que você tenha morado consigo mesmo toda sua vida. Você agora vai entender a razão de ter sofrido tanto e porque todos os outros pensam que você é um babaca: é que você mora com um cara babaca, você mesmo. Então você se expulsa. Esse é o cerne da prática budista: expulsar você do seu apartamento.

Então, quais pensamentos em específico são hábeis e quais são inábeis? Há uma longa lista dos dois tipos que você pode consultar na literatura budista. Por exemplo, entre os inábeis temos: ansiedade, agitação, orgulho, ciúmes, culpa, orgulho, ganância, avareza, pensamentos vingativos, inveja, mau humor, raiva, ódio, fúria, tristeza, medo, tendenciosidade, ilusão, teimosia, pobreza de espírito, torpor, complacência, afeto, desejo sensual, e a lista segue. Habilidade segue na linha oposta: generosidade, renúncia, amor-bondade, compaixão, equanimidade, flexibilidade, estabilidade mental, atenção plena, e por aí vai. No entanto, seu trabalho aqui não é decorar listas, mas aprender a reconhecer habilidade e inabilidade a partir de sua própria experiência. Todas essas coisas podem ser postas em teste, na verdade devem, do contrário você jamais entenderá em detalhe o papel da habilidade e inabilidade em sua própria mente: vai ser arrastado por forças que não compreende, e não encontrará satisfação em sua vida. Por isso essas coisas são importantes.

Sexo e Budismo. Já falamos a respeito do pecado e como o budismo fornece uma ética sem ele. Também falamos de não-malefício e habilidade. De fato, expus os fundamentos da ética budista em umas poucas páginas para chegar aqui o mais rápido possível. Ufa! Agora podemos começar a falar de sexo, e é provavelmente por isso que a maioria de vocês está lendo o texto.

Se você deu uma olhada na lista de pensamentos inábeis, pelo menos dois dos itens provavelmente vão te surpreender: afeto e desejo sensual. “Como assim?”, você me pergunta, “Essas não são coisas boas? Eu não ia querer viver sem afeto e desejo, que chato”!

O dilema surge porque temos uma variedade de padrões para definir Bom e Mal dentro e fora do budismo. Por exemplo, temos preferências pessoais, tal como agitação é bom, tranquilidade e calma são ruins, ou o exato oposto. Temos normas sociais: ficar rico é bom, trabalho duro é ruim, programas televisivos de perguntas e respostas que estimulam a ganância são bons, pornografia que estimula o desejo é ruim. Nossos padrões muitas vezes mudam se pensamos nisso. Por exemplo: é realmente bom ser bonito, talentoso e famoso? É certo que não foi tão bom assim para Marilyn Monroe ou Elvis Presley no final das contas. Hábil e inábil podem ser os padrões budistas para bom e mal, e endossados pelo Buda, mas lembre-se que não são ordenamentos divinos. Eles devem concorrer no conjunto de seus valores com outros padrões. É sua escolha.

Então vamos considerar afeto e desejo sensual no contexto das cinco marcas da inabilidade listadas acima e, em seguida, considerar seus padrões concorrentes.

O afeto, por exemplo, para com um parceiro sexual, uma criança ou amigo, é apenas um pouco inábil.

Afeto.

  1. Causa estresse. O afeto é uma fonte de estresse se você sente que não recebe o suficiente ou sente certa perda ao não conseguir expressá-lo.
  2. Distorce a Realidade.O afeto tem uma dimensão egocêntrica: é garantido para aqueles que vão corresponder seu afeto, ou a quem vá te trazer algum benefício, ainda que muitas vezes vejamos o afeto como algo altruísta.
  3. Baseado em:  Cobiça.
  4. Causa malefícios.O afeto dilata o limite do interesse próprio. Assim como você prejudicaria outros por seu próprio bem, você pode prejudicar outros pelo bem daqueles por quem tem afeto ou amizade.
  5. Subverte o desenvolvimento.O afeto é confundido facilmente com amor-bondade, que no budismo é como os raios do sol: se aplica universalmente e igualmente a todos, sem parcialidade (amigo ou inimigo) e não causa estresse. O afeto é parcial e essa parcialidade pode inibir o desenvolvimento do amor-bondade, ou ser um trampolim para o desenvolvimento do amor-bondade.

O desejo sensual é a cobiça por prazer sensual, por exemplo, por sexo, por salgadinhos, por massagens, banhos demorados, ou sono, por dançar, música, álcool, fumar, drogas, filmes de ação, esportes perigosos, ou videogames, por bater papo e fofocar, e assim por diante. É importante distinguir desejo do prazer, que é o objeto do desejo.

Desejo sensual:

  1. Causa estresse. O desejo é doloroso, às vezes tão doloroso que você mal consegue suportar. É como uma febre. O alívio é possível se o objeto do desejo é realizado, mas de outro modo leva tipicamente à decepção amarga, um tipo de aversão.
  2. Distorce a Realidade.“O amor dá um jeito”, dizemos. De modo semelhante: “biscoitos dão um jeito”, “a cerveja dá um jeito” e assim por diante.  Interpretamos desejo como uma necessidade e muitas vezes deixamos de lado toda sabedoria para obter o objeto de nosso desejo. Carreiras, casamentos e saúde são negligenciados e descartados por conta do desejo.
  3. Baseado em: Cobiça.
  4. Causa malefício.É claro que o roubo é frequentemente o produto do desejo, incluindo o roubo do homem ou mulher de alguém. Uma característica surpreendente do desejo é quão conscientemente autodestrutivo ele pode ser. As pessoas sacrificam saúde física pelo desejo por comida, bebida, cigarros e assim por diante, e a saúde mental pelo desejo por entretenimento eletrônico, drogas e assim por diante. Muitas vezes as pessoas são levadas pela força do desejo a vivenciar um relacionamento danoso e infeliz atrás do outro. Quando o objeto do desejo não pode ser obtido ou é perdido, depressão, suicídio e assassinato podem ser o resultado.
  5. Subverte o desenvolvimento.O desejo sensual agita a mente, obstruindo a quietude e outros fatores hábeis. Facilmente desperta outros pensamentos inábeis tais como raiva, ciúmes, e cobiça pelos diversos instrumentos necessários para a satisfação do desejo, como aquelas roupas elegantes ou aquele carro esporte sexy. Pode facilmente se enraizar na forma de padrões habituais inábeis, ou seja, vícios.

O prazer, que é aquilo que o desejo sensual busca alcançar, na verdade não é em si problemático. Porém, desejo e prazer tendem a condicionar um ao outro. O desejo busca o prazer. O prazer muitas vezes evoca o desejo por mais do mesmo, ou por um aumento da dose de prazer, ou algum outro tipo de prazer diferente. Juntos eles formam um ciclo. Por causa de sua associação íntima nesse ciclo é que se confundem um com o outro. A incapacidade em compreender adequadamente o ciclo de desejo e prazer e reconhecer qual é qual danificou a história de muitas vidas, e mesmo de nações.

A maior parte das pessoas não lida muito bem com o prazer, mesmo quando está bem ao nosso alcance. Se eu não puder estar presente, perderei totalmente um momento prazeroso. Mesmo sendo presenteado com um por do céu magnífico refletido sobre o cintilante oceano, me consumo em pensamentos sobre os negócios ou no desejo sensual por uma mulher magnífica num cintilante vestido.  Desse modo o prazer facilmente se torna uma abstração, algo que imagino ter experimentado no passado e que desejo experimentar no futuro. Ainda sim, o desejo por essa abstração de prazer continuará insaciado. O resultado é simplesmente desejo mal conduzido, uma vida de mais dor que prazer.

O desejo sensual nos leva a traçar grandes planos. Se eu tiver desejo sensual por natureza, pela sombra de folhas sussurrantes contra o sol, posso me decidir por mudar para o campo, assim dificultando minha vida com longas viagens de ida e vinda ao trabalho. Contudo, no final das contas nunca consigo, de fato, trazer minha mente à quietude, nem ter tempo de aproveitar o sol lançando sombra nas folhas sussurrantes. Apenas gastei meu tempo e energia em busca de prazeres imaginários, mas o que vou fazer agora? Provavelmente decidirei mudar mais para o interior onde posso realmente aproveitar essas coisas. De fato, experimentamos tipicamente o desejo sensual, ou seja, dor, bem mais que o prazer, mas confundimos os dois. Não é de se surpreender que soframos tanto. Porém, a prática budista aprimora tanto a habilidade de experimentar o prazer quanto a sabedoria de moderar o desejo sensual.

Identificar o que é hábil e o que é inábil é uma boa base para diferenciar o bom do mal. Padrões concorrentes e não budistas estão à disposição. Por exemplo, tendemos a pensar em nossa sociedade que estar apaixonado é bom. É certamente uma experiência eufórica, vívida, animadora. Na verdade é uma mistura única e particularmente poderosa de prazer e dor, ou ainda bem-aventurança e angústia, de composição volátil, saindo facilmente de controle e se transformando em desespero, raiva, depressão ou algo pior; apesar disso, se for cultivada por tempo o suficiente pode cimentar numa parceria sólida para toda a vida e o fundamento para uma família feliz e harmoniosa, até que outros pensamentos inábeis interfiram. Também costuma-se pensar em nossa sociedade que diversão e agitação são bons. Frequentemente é possível considerá-los dentro do mesmo ciclo descontrolado de desejo e prazer, e com isso descobrir que, na verdade, há muito estresse envolvido; às vezes até mesmo desespero, escondidos sob a fachada da diversão e da agitação. Sempre falhamos em perceber isso.

Certamente pensamos em nossa sociedade que o afeto no seio de uma família harmoniosa ou entre amigos é bom. Eu mesmo sou o pai de jovens na faixa dos vinte (uma realização pré-monástica) e posso dizer que ser pai foi e continua sendo uma das partes mais significativas de minha vida. Contudo, fiquei preso por anos em pressão financeira; preocupações sobre saúde, sucesso acadêmico e outras questões de desenvolvimento; responsabilidades como cuidador e provedor, e assim por diante. Foi minha escolha na ocasião, e não me arrependo. O que você considera bom para si é sua escolha.

 

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Celibato e Monasticismo. Para recapitular, o budismo não é uma religião que funciona de modo igual para todos; ele organiza as questões éticas para você de modo a relacionar seus valores e motivações, escolhas, chances de causar malefício e o caminho para a perfeição de caráter, e a partir disso te permite tomar uma decisão bem informada baseada em seus valores pessoais, compromissos existentes e motivações a respeito de como moldar sua vida. Envolve uma grande variedade de escolhas de vida, permitindo até mesmo a opção pelo mais perverso e antinatural do comportamento sexual desviante: … o celibato.

Uma monja ou monge, pelo menos uma monja ou monge ideal, é alguém que tenta ser hábil em todas as coisas, ou seja, renunciar de todo ao interesse próprio, cobiça, aversão e ilusão, eliminando qualquer outro valor pessoal que possa entrar em conflito com essa intenção, de modo a entrar no mais direto caminho de aperfeiçoamento do caráter. Isso significa abrir mão daquilo que, para outros, são valores e comportamentos normalmente atraentes, sempre que estes possam encorajar pensamentos e atos inábeis. Esse caminho é frequentemente chamado de Caminho da Renúncia. Que Dogen, o fundador do Soto Zen no Japão do século XIII, descreva para nós:

Se você tiver um lar, deixe seu lar. Se tiver pessoas amadas, deixe-as. Se tiver fama, abandone-a. Se tiver renda, fuja dela. Se tiver campos, livre-se deles. Se tiver parentes, separe-se deles.

A ideia é abrir mão de qualquer coisa na sua vida que ameace evocar ou envolver em cobiça, desejo, aversão, medo, ansiedade. Uma monja ou monge simplesmente não participa no mundo com interesse próprio, não tem nada no mundo em seu nome que possa evocar o inábil. O sexo, apesar de ser em si mesmo puro, inevitavelmente se envolve em desejo, ciúmes, apego, possessividade, perda, raiva e gravidez. Isso faz com que seja um objeto chave para a renúncia, de fato sua renúncia é a marca da vida monástica. A renúncia física, do tipo não fazer sexo, é a parte fácil. A renúncia mental, do tipo não ficar constantemente obcecado por sexo a despeito de seus votos é a parte difícil, mas necessária para se manter no caminho da renúncia sem enlouquecer.

Como isso dá certo para a monja ou monge? Soa como uma coisa bem austera. Uma das funções da monja ou monge na comunidade budista geral, um dos modos principais nos quais eles servem aos leigos é ser um “experimento científico de manto”. Se você colocar essa combinação de ingredientes no tubo de testes humano o que acontece? Se o experimento for um sucesso, então os leigos, se não se tornarem eles mesmos monjas e monges, vão começar a olhar para suas vidas e se perguntar de que modo podem simplifica-las. Pode ser que queiram manter o sexo e a família, mas fica a questão: é mesmo necessário ter a casa na praia, o último aparelho eletrônico, a última moda? Se o experimento falhar, os leigos continuarão, reassegurados, com seu hedonismo. Monges e monjas são uma comprovação da realidade e sua presença manteve a chama do budismo acesa todos esses anos.

O fato é que monges e monjas são, em geral, as pessoas mais positivas que você vai conhecer na vida. Exemplos modernos incluem Dalai Lama, Thich Nhat Hahn, Cheng Yen, Bhikkhu Bodhi e Pema Chrodron, ah, e eu, além de alguns milhões de outros. O experimento é, em geral, um grande sucesso, diferente do que o senso comum prevê, mas dentro da previsão da psicologia budista. As coisas não são o que parecem; vivemos no País das Maravilhas. Personificando os princípios budistas, a presença tradicional de monges e monjas na comunidade budista geral serviu ao longo da história para incentivar todo mundo a procurar mais e mais a pureza da mente, um ensinamento de valor incalculável e que vem antes das palavras. Além disso, fatores hábeis baseados em generosidade, bondade e sabedoria substituem pensamentos inábeis de cobiça, ódio e ilusão. Livres de preocupações consigo mesmos e de problemas pessoais, monges e monjas tem uma valiosa reserva de energia disponível para beneficiar outros, tradicionalmente educando-os e provendo bem-estar social, além de ensinar o Dharma.

Por outro lado, a vida monástica exige determinação. Se a mente não entra nos trilhos é muito fácil cometer um deslize e recair nos encantos no mundo. Não é nenhuma surpresa que o maior tipo de deslize é o sexo, um testemunho da primazia dos impulsos sexuais. Por isso, permanecer na vida monástica exige bastante apoio da comunidade, do mesmo modo que ficar sóbrio exige apoio de uma comunidade como Alcóolicos Anônimos. Exige também clareza a respeito dos limites que podem ser perigosos para a monja ou monge, causando facilmente sua queda num pântano de impulsos inábeis, dos quais os leigos devem também estar cientes. Também é importante que um monástico seja renunciante antes de mais nada, não como uma condição para cumprir algum papel. Essa é a diferença entre a Sangha monástica budista e o sacerdócio católico: monásticos não são sacerdotes; se não quiserem mais praticar a renúncia, simplesmente voltam para a vida leiga. Sacerdotes católicos são muitas vezes sacerdotes, mas, no fundo de seus corações, não são renunciantes.

Parece ser muito trabalhoso, porém se há determinação, é uma condição sem problemas pessoais, uma condição esvaziada de egoísmo e de completa tranquilidade. É um estado de liberdade absoluta, céu azul, nada para atravancar a mente, apenas quietude, não ter obrigação nenhuma senão praticar o caminho budista e descobrir meios de beneficiar o mundo. Esses valores fazem todos os outros parecerem pequenos.

Budismo japonês. Permita-me concluir com algumas palavras a respeito do zen japonês, já que comecei com o contraste entre o budismo japonês contemporâneo e outras formas de budismo. A Sangha monástica, que se desenvolveu como o zen que conhecemos na China e então foi levado ao Japão, Coréia e Vietnã, começou a entrar em colapso no Japão em 1872, não porque o budismo japonês tenha encontrado um caminho melhor, mas por decreto de um governo hostil ao budismo e ávido por se ocidentalizar. O governo Meiji decidiu reformar o budismo para se assemelhar a igrejas protestantes ocidentais, e por isso forçosamente acabou com a exigência do celibato, da abstenção do álcool e do uso dos mantos em público para o clero budista, transformando a Sangha monástica através do tempo num sacerdócio. Isso afetou a tradição na Coréia também durante a ocupação colonial japonesa (1910-1945).  Especulo que essa mudança para uma forma institucional mais reconhecível no ocidente foi inadvertidamente responsável pelo rápido crescimento do zen aqui. Existe, contudo, um movimento pequeno no Japão e no ocidente para a restauração da ordem monástica no Soto Zen que, no ocidente, é mais notoriamente representado pela Abadia de Shasta na Califórnia.

O Soto Zen japonês, no qual Sensei Warner foi extensivamente treinado e teve a oportunidade de verificar como fonte, continua, a despeito dessas mudanças, uma tradição poderosa. Seu fundador Dogen (século XIII) é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da história do budismo. Espero que o zen continue a florescer aqui, e considero que professores como o Sensei Warner tem um papel crítico em assegurar que ele seja compreendido corretamente, e é minha opinião que esta seja uma preocupação sincera dele. O zen é sutil, mas tem um fio penetrante; foi tradicionalmente ensinado pelo exemplo mais do que por palavras. Por isso, quero me desculpar a leitores zen desse artigo por minha linguagem um tanto analítica, que está mais no espírito do budismo indiano do que do zen. (Deveria me desculpar também aos leitores que esperavam um linguajar mais atrevido. Mas você pode recorrer ao livro do Sensei Warner, e se é isso que você estava esperando encontrar aqui, provavelmente não leu até aqui de todo modo). O fato é que as pessoas normalmente entendem o monasticismo rapidamente quando se deparam com ele, simplesmente pelo exemplo, mas para a maioria dos leitores sem essa oportunidade, sua lógica precisa que ser descrita. Espero que esse relato possa ter servido para esse fim.

Traduzido por Luiz Fernando Rodriguez

Revisado por Tiago da Silva Ferreira

Texto original em inglês: https://bhikkhucintita.wordpress.com/home/topics-in-the-dharma/sex-sin-and-buddhism/

Um comentário em “Sexo, pecado e budismo

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