De Joah McGee
Esse artigo foi originalmente publicado em Insight Myanmar.

Até onde sei, neste mês, desde que a atual crise no Mianmar começou, a importante publicação budista ocidental The Lion’s Roar, publicou exatamente um único artigo sobre o tema: uma breve e um tanto vaga (e historicamente não muito precisa) reflexão de Randy Rosenthal que foi extensivamente compartilhada nas mídias sociais.
Nela, tive o prazer de ver uma referência a como os praticantes de vipassana e mindfulness (plena atenção) deveriam ter o Mianmar em mente neste momento: “Esta história significa que qualquer pessoa que pratica qualquer forma de mindfulness – seja em um mosteiro, um centro de meditação secular, através de um aplicativo de meditação ou Terapia Cognitiva Comportamental – deveria hoje sentir uma afinidade com o Mianmar. ”
Estabelecer essa ligação entre a prática contemporânea no Ocidente e suas origens na Birmânia budista é certamente importante a se reiterar. No entanto, aquela mensagem se torna um tanto ambígua; não há nenhuma palavra sobre como (ou se) tal “afinidade” deveria se traduzir em ação. Em vez disso, aparece uma linha que me deixou perplexo: “Eu me apaixonei pelo Mianmar. Não apenas a terra, mas as pessoas. Agora, na esteira de um golpe militar, estou preocupado com eles. Estou muito preocupado.” Muito preocupado, ok, e então…? Nada é acrescentado. Isso me lembra o “discurso diplomático” que agora temos visto de países e organizações mundiais que, conforme as notícias continuam a piorar, elevam suas declarações oficiais de “grave preocupação” para “demanda urgente”.

Recentemente, escrevi sobre a posição moral que eu firmemente acredito que as instituições de meditação ligadas à linhagens birmaneses deveriam tomar neste momento. Mas qual é o papel do meditador individual que tem ligação com o Mianmar, ou o yogi que segue a meditação de origem birmanesa? Há considerações que vão além do estado emocional de estar “muito preocupado” e que são mais úteis?
Isso pode ser difícil de desvendar. As organizações têm uma missão declarada e podem ser responsabilizadas se não agirem de acordo com esses objetivos. Mas com indivíduos não é tão simples. Pessoalmente, acho impróprio dizer aos outros como devem agir ou se envolver, ainda mais dizer ou sugerir sobre como devem se sentir. Mas o que torna essa questão ainda mais desafiadora é a influência subversiva da esquiva espiritual, que nunca é uma justificativa saudável para a falta de sentimento ou envolvimento.
Então, deixem eu declarar minha visão com clareza: embora eu jamais fosse impor a qualquer indivíduo o que ele deveria fazer ou sentir, não hesito em apontar uma esquiva espiritual quando ela se esconde por trás de uma decisão de se desengajar, ou de não se envolver de forma alguma. A quantidade de esquivas espirituais que tenho ouvido e lido em relação à crise política e humanitária no Mianmar tem sido desanimadora, para dizer o mínimo.

Neste ensaio, tento abordar este equilíbrio muito difícil entre, por um lado, honrar e respeitar o arbítrio individual; e de outro, apontar onde um retrocesso que se disfarça de “agência individual” é simplesmente uma desculpa em forma de esquiva espiritual. Espero que possamos seguir em frente com essa dança tão sensível entre chamar a atenção para esse fenômeno, ao mesmo tempo em que afirmamos que nunca é apropriado ditar termos de engajamento aos indivíduos. Talvez o medo deste último seja o motivo de Rosenthal ser incapaz de avançar seus próprios pensamentos além do ponto de estar “muito preocupado”. Mas seja qual for a razão, seu insucesso em ir além é emblemático dos muitos caminhos que agora encorajam a esquiva espiritual, que se tornou endêmica em algumas comunidades de praticantes ocidentais.
Primeiramente, gostaria de deixar claro o significado de esquiva espiritual. É um termo criado no início dos anos 80 por um professor budista, John Wellwood, quando ele notou alguns estudantes usando suas práticas como uma desculpa nada saudável para evitar o desafio mental ou “coisas” emocionais. Para uma definição atualizada, estou reproduzindo logo abaixo o trabalho realizado por Clyde Ford, um meditador de vipassana na tradição do Goenka e um treinador anti-racista que liderou seminários com a organização. Ele escreveu:
• ESQUIVA ESPIRITUAL: O uso de ideias e práticas espirituais para esquivar-se de ou evitar o enfrentamento de questões emocionais, feridas psicológicas ou injustiças sociais não resolvidas.
Ele dá os seguintes exemplos:
• “Eu (Nós) estou cheio de compaixão, pratico Metta para todo mundo, jamais poderia ser considerado (ou este centro/templo jamais poderia ser considerado) preconceituoso ou racista.”
• “Foque apenas no que te ensinaram.” Isso já é o suficiente. “Não há necessidade de defender questões sociais nem discutir assuntos interpessoais.”
• “Tudo o que precisamos é de mais ________ (paz, amor, compaixão, meditação, Metta, etc.), e todo o resto vai se resolver por si só. Não há necessidade de confrontar pensamentos, emoções e sentimentos difíceis.”
• “Com tanto(a) ________ (paz, amor, compaixão, meditação, Metta, etc.) ninguém poderia se sentir excluído em nossa comunidade.

Neste último mês, através de interações com outras pessoas e nas mídias sociais, tenho visto três categorias de esquiva espiritual em relação à crise em desdobramento na Terra Dourada:
- A primeira categoria usa sabedoria budista ostensiva como disfarce, praticamente uma descrição palavra por palavra de Clyde Ford. É mais ou menos assim: “Certifique-se de enviar mettā. É lamentável o que está acontecendo, mas temos que lembrar que é tudo carma de qualquer maneira. Dessa forma, apenas deseje a eles que sejam equânimes.
O que é traiçoeiro nessa forma de esquiva espiritual é que, superficialmente, realmente parece um bom e sábio conselho para qualquer meditador. Mas qual é o problema aqui? O problema não são as palavras em si, mas a intenção por detrás delas. Uma verdade da meditação está sendo usada para justificar a inação e/ou o desengajamento – que são muito diferentes do desapego compassivo. Um praticante maduro é capaz de se envolver muito, enquanto permanece desapegado do resultado. Portanto, o significado daquelas palavras de Dhamma é, na verdade, algo como: “Compreendo que há sofrimento palpável para outros seres, mas mesmo entendendo isso, escolho não ajudar em nada além dos bons pensamentos que envio por meio da prática de meditação.”

É importante notar que existe uma maneira de verbalizar essa mesma mensagem de sabedoria sem implicar que nenhuma outra responsabilidade ética ou compromisso seja necessário. Temos dois exemplos maravilhosos no caso das entrevistas com Daw Viranani e Sayalay Chandadhka. Ambas enfatizam o valor de mettā acima de tudo, tanto para si mesmas quanto para todos os outros. Ambas fazem referência ao papel do carma e encorajam o praticante a buscar uma mente equilibrada. No entanto, nenhuma das duas nunca deu qualquer indicação de que é uma simples questão de colocar um “x” em uma caixa em nossa lista de meditação, enquanto permanecemos desengajados; pelo contrário, ambas se envolvem profundamente com as questões bastante confusas e desconfortáveis da realidade atual no Mianmar, entendendo que a personalidade e as circunstâncias de cada um ditarão o grau e tipo de envolvimento. Mas a mensagem delas é gerar mettā e estar empaticamente engajado de qualquer maneira que pareça correta para o indivíduo, enquanto procura-se permanecer desapegado do resultado.
Essa forma de esquiva espiritual baseia-se na manutenção da aparente equanimidade diante dos desafios. No entanto, equanimidade não é apatia. Muitos professores (como neste vídeo de Bhante Suddhasso no Monastério Empty Cloud) procuram certificar-se de que essa distinção está clara pois é bastante fácil confundir apatia (um sinal de esquiva espiritual) com equanimidade (um sinal de crescimento espiritual). O desengajamento mostra apatia, o desapego mostra equanimidade.
A tendência da esquiva espiritual de contornar os desafios do mundo pode até ser encontrada em alguns monges ocidentais que vivem no Mianmar. Poucos dias depois do golpe, um monge escreveu nas redes sociais: “Não há necessidade de se preocupar conosco. Estamos bem na nossa bolha num distante mosteiro na montanha. Os monges não devem se envolver na política e devem ter coisas mais importantes para fazer ”. Aqui, este monge cria uma falsa escolha binária: ou um monástico marcha na rua ou vive uma vida contemplativa. Uma vez que “os monges não devem se envolver na política”, sua conclusão é que não há espaço para engajamento ou envolvimento de qualquer tipo – mais uma vez, basta consultar as palestras das duas monjas acima para ver como a sabedoria budista pode ser integrada a vários níveis de engajamento, até mesmo por monges e monjas.
Para mim essa abordagem parece basear-se no privilégio, o que um post posterior do mesmo monge deixa mais claro: “Estou ansioso para que a Internet no Mianmar seja cortada, mas parece que não vai acontecer. Acho que isso é bom para as pessoas daqui. ” Não está claro por que ele poderia estar “ansioso” pela falta de internet. Mas seja qual for o motivo, o acesso à Internet fornece ao povo birmanês uma muito literal – e basicamente a única – válvula de escape para o mundo hoje em dia, por isso é impressionante que o monge esteja totalmente alheio a esse fato crucial sobre o país em que vive, ou talvez ele não se importe que os apoiadores birmaneses que o alimentam e vestem sejam privados deste serviço essencial em uma época de tamanha turbulência e sofrimento. É uma armadilha usar o próprio status de privilégio para evitar interagir compassivamente, quanto mais compreender a situação daqueles sem esse privilégio.

- O segundo tipo de esquiva espiritual que vi este mês é baseado na afirmação de que a prática budista sobreviverá em um país budista, independentemente do governo ou do que aconteça por lá. Tal ideia foi melhor expressa por um meditador nas redes sociais: “O budismo foi fundado, cresceu e prosperou sob os governos de imperadores e reis que eram muito mais autocráticos do que os atuais governantes militares do Mianmar. Portanto, no que diz respeito ao budismo, não vejo nenhum problema se o Mianmar é governado pelo Tatmadaw [militar] ou pela NLD [Liga Nacional para a Democracia]. Os próprios membros do exército do Mianmar são budistas. O golpe não tem nada a ver com a supressão do budismo. O budismo não está de forma alguma ameaçado no Mianmar. Não há supressão do budismo ou de qualquer liberdade religiosa lá. ”
Primeiramente, as imprecisões subjacentes a essa crença precisam ser corrigidas. O budismo sobreviveu, mas nem sempre “prosperou” sob governantes autocráticos. Muitos reis birmaneses foram guiados por conselheiros hindus e animistas, ou movidos pela superstição, de modo que os membros da Saṅgha certamente não acreditavam que apoiassem uma “próspera” religião Theravada. Houve reis budistas loucos que realmente tentaram assassinar monges; alguns reis usaram a Saṅgha e uma série de doutrinas budistas adjacentes para seguirem com suas próprias missões mesquinhas e egoístas, ou interferiram na Saṅgha monástica para se adequar a seus próprios planos. E a história está repleta de reis birmaneses propagando opressão, tirania e guerra, não exatamente com foco na promoção e propagação do budismo.

E esta realidade não se refere apenas aos velhos tempos de reis autocráticos e caprichosos. Em tempos mais contemporâneos, vimos o regime militar promover a causas de monges nacionalistas e prender ou perseguir professores mais progressistas. Sob o regime militar anterior, era necessário muito trabalho para um mestre de meditação como S.N. Goenka para conseguir a aprovação de seus cursos, o que só poderia ser feito fechando os olhos aos significativos abusos de direitos humanos que aconteciam no país na época. Esta não é uma acusação contra Goenka, ele fez o que sentiu que precisava fazer, dadas as circunstâncias, para avançar sua saudável agenda. Mas também é verdade que este tipo de aprovação tácita da repressão militar apenas ajudou a perpetuar o sofrimento do povo birmanês.
Em nossa entrevista com Thabarwa Sayadaw, ele observou como a estabilidade e o crescimento de seu próprio centro só foram possíveis devido às liberdades sociais que surgiram após as reformas de 2012. E em nossa entrevista com Chit Tun, ele fala sobre todos os mosteiros que vinham definhando na pobreza, incapazes de receber doações ou servir suas comunidades, porque os militares não permitiam que sua real condição fosse divulgada. E esses relatos são apenas dos anos 1990. Voltando um pouco mais no tempo tínhamos um país com seus incríveis mestres budistas totalmente isolados do mundo exterior – monásticos e iogues estrangeiros incapazes de entrar, e os grandes professores, como Sayagyi U Ba Khin, incapazes de se aventurar fora das fronteiras do país. A capacidade das tradições de crescer e se espalhar foi prejudicada e o acesso a elas cortado.
E mesmo nesta crise atual, houve a notícia de que os militares pressionaram alguns Sayadaws muito venerados para obter seu apoio e, quando eles se recusaram, espalharam rumores escandalosos sobre eles. Monges progressistas foram presos e os militares libertaram prisioneiros, injetaram morfina neles e os enviaram vestidos de monges para bairros com o intuito de provocar a população.

Portanto, não, claramente nem tudo tem sido um mar de rosas para a Sasana no Mianmar, seja quando olhamos ao longo do longo arco da história, ou em tempos mais recentes… ou mesmo agora. A realidade é que a Sasana não está em segurança por definição apenas porque existe no Mianmar.
Esta forma de esquiva espiritual usa aquela altamente imprecisa e mal informada declaração de crença como uma conveniente justificativa para ser desengajado de qualquer lugar, exceto a almofada [de meditação] – uma vez que a Saṅgha está segura no Mianmar, qualquer preocupação com problemas mundanos é desnecessária… mesmo que o sofrimento humano seja o evidente resultado. Como na primeira categoria, a segunda serve apenas para tornar a inação e o desengajamento palatáveis, e nos afasta de agir positivamente no mundo para o benefício direto de outros seres. Novamente, para mim, essa perspectiva não é o que o Buda ensinou, especialmente para os seguidores leigos, que, por definição, optam por não deixar a vida terrena.

Foto: Frontier Myanmar
3. O terceiro tipo de esquiva espiritual que encontrei se esconde por trás da devoção em ver o caminho mantido no mundo acima de tudo. Parafraseando: “O acesso à prática budista e a professores qualificados pode agora ser encontrado em todo o mundo. Portanto, embora a situação atual no Mianmar seja triste, não temos nenhum receio a respeito da sobrevivência dos ensinamentos do Dhamma, por pior que esteja lá. ”
Isso pode soar um pouco duro, mas o texto desta mensagem não é apenas uma maneira menos ofensiva de dizer: “Certamente esperamos que o Mianmar não imploda e se torne um estado terrorista de terra arrasada na próxima década, onde muitos milhares de inocentes podem morrer. Se isso acontecer, é lamentável, mas assim é a vida e assim é o samsara, e não é realmente nossa preocupação. Devemos apenas continuar praticando. ” Além de transmitir esse significado digno de nota, também neste caso, a base “factual” da asserção é igualmente importante a se desvendar.
Em primeiro lugar, deixe-me primeiro dizer, de forma inequívoca, que como tudo no mundo, o “budismo birmanês” não é uma entidade perfeita… e às vezes descaradamente imperfeita. Portanto, não pretendo de forma alguma romantizar ou pintar um quadro exotificado das glórias do Dhamma do Mianmar. No entanto, certamente há uma profundidade, diversidade e possibilidade de prática aqui que simplesmente não existe em nenhum outro lugar do mundo! Uma declaração evasiva como a citada acima compreende de modo completamente errado a riqueza, amplitude e complexidade da prática do Dhamma na Terra Dourada; em vez disso, privilegia sua própria versão, provavelmente ocidental, e talvez até mesmo diluída da comunidade e prática budista. Ela parece concluir – chocantemente e sem qualquer base de fato – que agora todos os elementos importantes da prática do Dhamma emigraram da Terra Dourada.
Mais uma vez, um entendimento incorreto, desta vez das circunstâncias presentes, é usado para justificar a decisão de se desengajar passivamente, evitar enfrentar uma realidade desafiadora, lavar as mãos de qualquer responsabilidade, deixando o povo birmanês sofrendo sem apoio.

Foto: Frontier Myanmar
Existe um tipo mais específico de esquiva espiritual relacionada a essa categoria do “Dhamma que sobreviverá”. Diz respeito a uma comunidade particular de meditação que, de todas as práticas conectadas ao Mianmar, é a mais difundida em todo o mundo, mas também parece mais propensa a ser vítima de uma esquiva espiritual, e talvez especialmente neste momento particular: a tradição vipassana de S.N. Goenka. Hesito em chamar qualquer grupo pelo nome em um fórum como este, mas vários praticantes e professores dentro da organização me procuraram recentemente para compartilhar suas próprias experiências com esta forma de esquiva espiritual no contexto dos eventos que estão ocorrendo no Mianmar, então eu seria negligente se não fizer nenhuma menção aqui. Dito isso, é minha intenção fazê-lo com respeito e cuidado.
Claro, primeiro deixe-me dizer que esta tradição é servida por um grande número de adeptos abnegadamente dedicados, e muitas vidas foram transformadas por meio desses ensinamentos. E é importante enfatizar que todos os meditadores e professores dentro desta tradição certamente não toleram a esquiva espiritual; na verdade, um número crescente de praticantes está tentando abordá-la dentro de sua própria comunidade espiritual, em particular no que se refere a questões de raça, como no trabalho de Clyde Floyd mencionado acima. E o próprio Goenka ensinou sobre a diferença entre “ação [positiva]” (engajamento com a sabedoria, que os iogues deveriam tentar fazer) e “reação” (engajamento sem sabedoria, que os iogues deveriam tentar evitar); ele não estruturou seu ensino em termos de engajamento versus desengajamento. Portanto, por favor, não tome isso como uma crítica generalizada à tradição Goenka, para a qual tenho uma dívida de gratidão pessoal. Abordamos apenas a “armadilha do esquivo” em que os membros desta comunidade parecem propensos a cair, conforme evidenciado pelas declarações ouvidas neste mês. Espero que os leitores entendam o valor nominal quando digo que meu único objetivo ao levantar essa questão aqui é falar sobre isso clara e abertamente para que a consciência e a mudança possam começar a acontecer, como fiz com os outros tipos de esquiva espiritual.

Foto: Frontier Myanmar
Uma razão pela qual esta organização parece propensa à esquiva espiritual – e por que ela está manifestando-se neste momento e desta forma em particular – é que sua narrativa tradicional abre involuntariamente a porta dos fundos permitindo que ela entre. Com relação à situação atual do Mianmar, o raciocínio é mais ou menos este: “Embora nossa tradição de meditação venha do Mianmar, adquirimos a técnica pura por meio de uma cadeia de professores que remonta diretamente ao Buda. Atualmente, [esta tradição] está se enraizando com segurança em muitos países ao redor do mundo. Portanto, podemos ter certeza de que nossa tradição salvaguardou os ensinamentos do Buda. O que está acontecendo agora no Mianmar é lamentável, mas a Birmânia não é mais essencial para nossa missão. ”
Tal como acontece com os outros tipos de esquiva espiritual, esse raciocínio se baseia em uma premissa conveniente, mas falha. Este [texto] não é o lugar para explorar o que fez com que a narrativa da tradição se desenvolvesse dessa maneira, nem a subsequente construção de mundo a que ela deu origem. Mas, colocando de forma sucinta, é uma visão reducionista e historicamente imprecisa da real transmissão da linhagem, postulando uma linha direta de professores birmaneses que remonta ao século 19, que pode então ser rastreada diretamente até o Buda. Na verdade, a realidade birmanesa é mais fluida e dinâmica, e o registro histórico é bastante claro que esta tradição particular quase certamente se originou com o grande monge Ledi Sayadaw no final do século 19 e início do século 20 (mesmo que os ensinamentos agora não sejam totalmente idênticos ao que Ledi ensinou). Além disso, a narrativa tradicional mais ampla afirma que a linhagem protege a única forma pura dos ensinamentos do Buda por meio de sua técnica de meditação vipassana, e que sua principal missão é salvaguardar esse ensinamento singularmente precioso até que o próximo Buda surja. Tomados em conjunto, esses fatores narrativos podem engendrar uma intensidade de fé, responsabilidade e certeza em alguns de seus seguidores para se dedicarem completamente a esta missão única, com tudo o mais sendo secundário. Infelizmente, há a consequência não intencional de dar a alguns de seus praticantes uma justificativa fácil para se desvencilhar das preocupações mundanas desafiadoras, às vezes expressas com a certeza de que estão acima de tudo. Esses fatores são facilmente discerníveis na justificativa de esquivar-se citada acima.

Foto: Frontier Myanmar
Em suma, a esquiva espiritual assume diferentes formas de acordo com o raciocínio e as crenças usadas para racionalizá-la, e eu descrevi várias maneiras que ouvi expressadas durante a crise atual. Espero que meu propósito ao escrever este artigo tenha sido claro: não era apontar dedos ou reclamar, ou orquestrar como as pessoas deveriam se sentir ou agir; em vez disso, era para chamar a atenção para os perigos que se escondem na forma de argumentos pseudo-espirituais, que apresentam estruturas mentais e justificativas para distância, desengajamento e falta de empatia em meio à realidade confusa do samsara.
O povo birmanês e a saúde da Sasana na Terra Dourada precisam mais de nós do que estarmos “muito preocupados”, e se realmente formos gratos pelos tesouros que obtivemos da Terra Dourada – em qualquer forma – iremos transformar essa preocupação em algum tipo de ação, seja grande ou pequena.
Eu entendo que para alguns e talvez muitos leitores, a pergunta é: “Tudo bem, mas o que posso fazer de tão longe?” No entanto, isso exigirá outra longa reflexão e, portanto, fique atento a um ensaio que explora essa questão em uma próxima postagem no blog.
Agora podemos usar esses fundos para apoiar diretamente o Movimento de Desobediência Civil (CDM). Todas as doações vão diretamente para os manifestantes. A plataforma de doação é::
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Nestes tempos onde o algoritmo polariza a população mundial, vendo monges theravada se envolvendo em política, percebo claramente que kali yuga está assentada sobre a cova de Dhamma.
Só há vir a ser!
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Tendo em vista que o budismo sempre esteve envolvido em política, desde os seus primórdios (aliás, ele nem teria sobrevivido sem alianças políticas), talvez você ache que Kali Yuga seja o próprio fundador do Dhamma.
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“budismo” é uma invenção popular. Uma noção abstrata que tem significados diferentes para indivíduos diferentes. O que importa é que o Senhor Buda não se envolvia em política e qualquer um que tenha deixado a vida leiga e esteja seguindo seus passos também não se envolveria em política.
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Desculpe, mas sua afirmação não é verdadeira. Em primeiro lugar, política também é um termo abstrato que significa várias coisas para diferentes pessoas. Política, pelo visto, não tem o mesmo significado pra mim e para você, pois você não vê o Buda como agente político e eu vejo. Em segundo lugar, os monges sempre se envolveram e continuam se envolvendo na política. Os ensinamentos do Buda sequer teriam chegamos até nós se determinados monges não tivessem se aliado a determinados reis e classes sociais em diferentes momentos da história. Nem vou citar exemplos, pois eles são inúmeros e não caberiam num só comentário.
Se você não tem interesse em doar para a causa, não precisa fazê-lo. Outros vão continuar doando.
Obrigado.
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