A Arte da Vida Leiga (Parte VIII)

A maior parte dos ensinamentos do Buda foi dada a monásticos. Mas e quanto aos praticantes leigos? Nessa série de estudos que o blog Budismo & Sociedade está publicando semanalmente, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre a arte de viver do budista leigo. Nesse oitavo de dez capítulos, o autor nos sugere incluir em nossa vida cotidiana rituais e plena atenção.

A Arte da Vida Leiga 8: Equilibrando Elementos (cont.)

De Bhikkhu Cintita Dinsmore

Começamos a olhar na semana passada para maneiras de começar a esvaziar o que normalmente pensamos a respeito de nossos próprios valores e atividades seculares ou leigos. Uma vez que o senso de identidade é a raiz de todo sofrimento, este ato harmoniza mais esses elementos com a prática budista. Um modo de fazer isso é aprender a tratar esses elementos com devoção, que consiste em servir a esses elementos ao invés de colocá-las a nosso serviço. Nós já temos a devoção como um componente primordial de qualquer prática religiosa, incluindo a budista. Usando-a desse modo, conseguimos extrair dela o máximo. Quero falar a respeito de duas categorias de técnicas para o esvaziamento do eu: primeiro ritual e atenção plena, e segundo bem-estar.

Ritualização e atenção plena. Atenção plena é um assunto do qual ouvimos falar muito no budismo. É, em si, um dos fatores do Nobre Caminho Óctuplo, é a força motriz da meditação e faz parte de quase todas as outras práticas. Atenção plena envolve dois significados muito próximos: um deles é lembrar-se a cada momento qual a sua tarefa e voltar a ela caso tenha se desviado. O outro é simplesmente percepção momentânea. Agora, na meditação é comum que sua tarefa seja manter a mente na respiração. Se ela desviar, como, por exemplo, se você começar a pensar em contas ou trabalho ou numa piada engraçada, a atenção plena é o que te lembra de voltar à respiração. Atenção plena tem a propriedade da percepção, mas também encoraja a percepção aguçada, tal como a maioria das pessoas experimenta ao meditar.

Ora, o mesmo princípio pode facilmente se aplicar a muitas atividades cotidianas. Por exemplo, se você está escovando seus dentes, mantenha o foco da mente na área de contato entre os dentes e a escova. Se está fatiando cenouras, mantenha o foco da mente no ato de cortar, na faca em contato com a cenoura. Se numa dessas situações alguma coisa surgir na mente que não seja escovar os dentes ou fatiar cenouras, traga-a de volta à tarefa em questão. Isso funciona melhor com tarefas físicas, mesmo dirigir um carro. Agora, a atenção plena esvazia o eu de modo acentuado, porque o eu está envolvido no que passou e no que ainda está por vir, em nossos padrões de comportamento que definem nossas personalidades individuais e em nossas aspirações futuras. A atenção plena nos mantém no momento presente no qual nossa decisão momentânea de fazer isso ou aquilo está presente. Não é o foco normal da mente humana quando deixada solta.

A atenção plena é difícil o suficiente quando o que temos que fazer é algo simples como sentar e seguir a respiração. Fica mais difícil numa tarefa mais complexa, por exemplo, quando duas pessoas estão falando com você e, ao mesmo tempo, você está cortando cenouras, ou ainda enquanto você está medindo quantidades em sua mente e conferindo a receita enquanto faz isso. A razão é que é mais difícil em casos complexos determinar qual é sua tarefa a cada momento. Isso tudo nos mostra a vantagem de cultivar situações nas quais sua tarefa é claramente definida e a partir daí praticar atenção plena nessas situações. Em particular, você deveria tentar encontrar estratégias para fazer isso para todas as atividades que são um elemento eleito para sua vida. Aqui vão algumas sugestões:

  • Evite fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Isso inclui ouvir música enquanto corta cenouras ou dirige; tomar café, fumar, falar ao telefone e ouvir música ao mesmo tempo. Quando você estiver cortando lenha, apenas corte lenha;
  • Divida as tarefas ou interesses em subtarefas bem definidas e faça-os individualmente;
  • Imponha rotina. Ou seja, tenha modos convencionais de fazer as coisas, faça um conjunto de tarefas sempre na mesma ordem, sempre faça uma tarefa específica num contexto específico. Basicamente é uma questão de evitar a tomada de decisões, que apenas se tornam em mais tarefas para competir com as tarefas físicas em questão.

Assim como a devoção e , as pessoas não compreendem o papel que a ritualização desempenha no budismo. O Buda, por exemplo, considera se apegar a ritos e rituais um “grilhão”, mas, por outro lado, os suttas são cheios de práticas ritualísticas. Como assim? O Buda estava criticando os ensinamentos dos brâmanes que envolviam ritos e rituais para algum tipo de eficácia especial, tais como modos de fazer mágica ou controlar o futuro. Na verdade, temos muitos rituais em nossa vida cotidiana para os quais, em geral, não conferimos nenhum poder desse tipo, tal como aperto de mão, abraço, cumprimentos com a mão, tocar a campainha ou bater na porta antes de entrar, dizer “por favor” e “obrigado”. Rituais são simplesmente comportamentos convencionados em certos contextos que são ou podem se tornar altamente habituais. Eles são a rotina em sua lógica extrema. Ao invés de dizer “imponha a rotina”, podemos dizer “ritualize suas tarefas”.

Se você pratica num centro zen-budista, tal como o Centro Zen de San Francisco ou um de seus centros afiliados, ou o Monastério Zen da Montanha (típicos locais de prática zen-budista nos EUA), você provavelmente aprendeu certos rituais complexos apenas para entrar pela porta da frente e de lá seguir até sua almofada no zendô. Pode ser que você tenha aprendido o oryoki (o ritual de comer). É claro que a cerimônia do chá é altamente ritualizada. Você pode até mesmo ter descoberto o esvaziamento do eu que envolve o ritual se já passou da fase da insegurança de não saber fazer direito, ou da tendência exibida de quem sabe de fato. Esse é ponto no qual, usando expressões zen-budistas, as reverências se prestam sozinhas, o pé certo sabe a hora de dar um passo. Não há nada para o eu fazer, então ele desaparece; isso ocorre de modo perceptível e notório. De fato, o zazen (a meditação zen-budista) é descrita muitas vezes como o simples ritual de sentar como um buda, mas é claro que essas práticas estão todas no contexto budista. Dogen disse que a conduta ritual é o zen inteiro! Mesmo seguir os preceitos pode ser pensado como um ritual, ou seja, comportamentos por convenção.

Não há motivo para não poder ritualizar outras tarefas da vida, desde o ato de levantar, passando por tomar banho a trocar fraudas e conferir e-mails. Desenvolva convenções para ordenar as tarefas, do tipo se limpar após terminar uma tarefa antes de começar a outra. No zen, “não deixe rastros” é uma máxima comum. Limpeza e deixar as coisas no lugar são realmente oportunidades para a ritualização. Todas essas coisas criam um contexto no qual a mente pode aprender a não vagar e se dispersar, trazendo a prática de atenção plena para suas atividades diárias. A vida se torna uma rotina de fazer o que tem que ser feito ao invés de constantemente envolver-se com desejos e decisões e buscar um tanto de vantagem pessoal. Parece chato, né? É isso que as pessoas também dizem da meditação, e ainda sim a meditação é a única chance que muitos têm de experimentar alguma alegria em suas vidas.

Uma boa fonte bibliográfica sobre ritualização das tarefas é Dogen, tanto no Eihei Shingi (“Regras Puras para a Comunidade Zen”) quanto o Tenzo Kyokyn (“Instruções para o Cozinheiro Chefe”). Apesar de estes manuais terem sido escritos para monges, eles falam basicamente sobre tarefas domésticas e administração e como transformar essas coisas em prática budista. Eles são, na verdade, reescritas de manuais chineses tradicionais; eu me surpreendi ao encontrar um longo capítulo no Vinaya, do Buda, sobre como um monge aprendiz cuida do espaço de seu professor que tem muito do mesmo sabor desses manuais zen-budistas. Esse é um estudo valioso para todos os budistas.

Bem-estar. Apesar de falar muito em renúncia, a descoberta do princípio do Buda que o levou ao despertar é que você não pode se inclinar demais na direção da privação. Esse é o caminho do meio. Para o monástico, significa a expectativa dos requisitos básicos para manter a saúde. Para o discípulo leigo, isso quer dizer que você deveria manter cuidado para não viver sempre no limite, indo de uma crise em crise. Você deveria ser razoavelmente bem sucedido naquilo que empreender, em seu casamento, em seus negócios e assim por diante. Se você tiver expectativas muito altas vai se apegar ao crescimento pessoal a todo custo e ser infeliz. Se você não tiver expectativas altas o suficiente, vai se encasular num modo de vida protegido e ser infeliz. Ambos têm como foco o eu. Se sua vida é relativamente confortável e segura, você está na melhor posição para o desenvolvimento do caminho. Planeje sua vida de modo a evitar crises, estabelecendo uma medida constante de bem-estar. Aqui estão alguns conselhos detalhados do Buda que constam no Dighajanu Sutta (AN 8.54, disponível em http://www.acessoaoinsight.net/sutta/ANVIII.54.php):

“Existem essas quatro qualidades, Dighajanu, que trazem a felicidade e bem-estar para um leigo nesta vida. Quais quatro? Ser consumado no esforço persistente, ser consumado em vigilância, ter pessoas admiráveis como bons amigos e manter um modo de vida equilibrado.

E o que significa ser consumado no esforço persistente? É o caso em que um leigo, qualquer que seja a ocupação através da qual ele obtenha o seu sustento – pela agricultura ou comércio ou cuidando do gado ou através do arco ou como um serviçal do rei ou qualquer outra arte – ele a executa de forma hábil e incansável, possui o discernimento da sua técnica, ele é capaz de organizar e realizar sua tarefa. A isto se denomina ser consumado no esforço persistente.

E o que significa ser consumado em vigilância? É o caso em que um leigo possui riqueza íntegra – ganha de forma correta, proveniente da sua própria iniciativa, do seu empenho, do seu esforço, acumulada pela força do seu braço, obtida com o seu suor – ele consegue protegê-la através da vigilância [com o pensamento], ‘Como farei para que reis ou ladrões não levem consigo estes meus bens, nem que o fogo os queime, nem que a água os arraste, nem que herdeiros odiosos a levem consigo?’ A isto se denomina ser consumado em vigilância.

E o que significa ter pessoas admiráveis como bons amigos? É o caso em que um leigo, em qualquer cidade ou vilarejo que ele viva, ele passa o tempo com chefes de família ou filhos de chefes de família, jovens ou idosos, que possuem a virtude desenvolvida. Ele conversa com eles, participa de discussões com eles. Ele emula a convicção consumada daqueles que são consumados em convicção, virtude consumada daqueles que são consumados em virtude, generosidade consumada daqueles que são consumados em generosidade e sabedoria consumada daqueles que são consumados em sabedoria. A isto se denomina ter pessoas admiráveis como bons amigos.

E o que significa manter um modo de vida equilibrado? É o caso em que um leigo, conhecendo a sua receita e despesa, mantém um modo de vida equilibrado, nem perdulário nem mesquinho, [pensando], ‘Dessa forma a minha receita irá exceder minha despesa e a minha despesa não irá exceder a minha receita’. Tal como um pesador ou seu aprendiz, ao segurar a balança, sabe, ‘Ela se inclinou para baixo este tanto ou se inclinou para cima este tanto’, da mesma forma, o leigo, conhecendo a sua receita e despesa, mantém um modo de vida equilibrado, nem perdulário nem mesquinho, [pensando], ‘Dessa forma a minha receita irá exceder minha despesa e a minha despesa não irá exceder a minha receita’ (…)

“Existem quatro escoadouros da fortuna de uma pessoa: ser seduzida pelos prazeres dos sentidos; ser seduzida pela bebida; ser seduzida pelo jogo; e ter pessoas más como amigos, associados e companheiros. Tal como se houvesse um grande reservatório com quatro condutos e quatro escoadouros e um homem fechasse os condutos e abrisse os escoadouros e o céu não vertesse chuvas adequadas, o esgotamento daquele grande reservatório poderia ser previsto, não o seu incremento. Da mesma forma, existem esses quatro escoadouros da fortuna de uma pessoa: ser seduzida pelos prazeres dos sentidos; ser seduzida pela bebida; ser seduzida pelo jogo; e ter pessoas más como amigos, associados e companheiros.”

 

A sociedade moderna em muitas regiões tende a criar modos da vida que são, de muitos modos, mais seguros do que em séculos pregressos; por exemplo, a doença súbita seguida de morte por doenças infecciosas ou a inanição devido à seca não são ameaças constantes. Por outro lado, a mesma sociedade moderna cria condições nas quais o bem-estar econômico pode ser bem precário. Por exemplo, a perda de disponibilidade de um carro em bom funcionamento por conta de um acidente, a idade ou a incapacidade de efetuar pagamentos podem causar a perda imediata do emprego. O adoecimento, quando ocorre, pode resultar não somente na perda do emprego como em dívida ou falência.

 

Traduzido por Luiz Fernando Rodrigues

Revisão: Tiago da Silva Ferreira

Links:
A Arte da Vida Leiga Parte 1
A Arte da Vida Leiga Parte 2
A Arte da Vida Leiga Parte 3 
A Arte da Vida Leiga Parte 4
A Arte da Vida Leiga Parte 5
A Arte da Vida Leiga Parte 6

A Arte da Vida Leiga Parte 7

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