A Arte da Vida Leiga (Parte III)

A maior parte dos ensinamentos do Buda foi dada a monásticos. Mas e quanto aos praticantes leigos? Nessa série de estudos que o blog Budismo & Sociedade está publicando semanalmente, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre a arte de viver do budista leigo. Nesse terceiro de dez capítulos, o monge destaca que um praticante leigo deveria cultivar certos valores budistas em sua vida, a saber: Convicção, Virtude, Generosidade e sabedoria. A partir de então, ele ou ela pode refletir sobre os valores que coloca como centrais em sua vida. Nesse processo, o autor nos convida a fazer uma lista de coisas que consideramos realmente importantes em nossas vidas e depois confrontar o resultado com os valores defendidos pelo Buda.

De Bhikkhu Cintita Dinsmore

Selecionando elementos

Quanto às qualidades das quais se pode saber: ‘Essas qualidades levam ao  desencantamento, não à paixão; ao desprendimento, não ao agrilhoamento; a abrir mão, não ao acúmulo; à modéstia, não ao engrandecimento de si mesmo; ao contentamento, não ao descontentamento; à reclusão, não ao envolvimento; ao cultivo da persistência, não à preguiça; à desoneração, não à oneração’: você pode afirmar com categoria, ‘Esse é o Darma, essas são as instruções do Mestre. – O Buda a Mahapajapati, AN 8.53.

Se você é como a maioria das pessoas, sua vida é um pouco mais ocupada do que você gostaria: Você tem paixões, grilhões; você tem muitas posses, busca a importância, é agitado, envolvido, um pouco preguiçoso e provavelmente um tanto difícil de lidar. E, já que está lendo esse artigo, você está provavelmente tentando ou pretende tentar se ajustar a uma prática budista, além de tudo isso.

Deveria estar claro que podar algumas coisas é necessário para haver tempo e energia adequados para que haja prática budista, tanto para abrir espaço para essa prática como para a paz mental em si que ela também incentiva.

Infelizmente, muitos praticantes budistas não têm sucesso em fazer uma boa “poda”, ou nem mesmo começar a faze-la – apenas adicionam a prática de meditação ou cânticos matinais ao resto das coisas que fazem em suas vidas frenéticas. Isso é um erro: primeiramente, leva a mais estresse, uma vez que sua vida se torna ainda mais cheia, e, em segundo, é provável que torne sua vida se torne mais fragmentada, uma vez que muito do entulho de sua vida é, provavelmente, contrário à prática budista. A palavra chave é “simplificar”.

Agora, os monásticos são pessoas que vão à raiz do problema e simplesmente descartam toda a massa de envolvimento. Os discípulos leigos é que precisam ser mais seletivos, e esse é o tópico do artigo de hoje e da semana que vem. Eu recomendo veementemente que todos os discípulos leigos levem esse passo muito a sério. Acho que alguém sábio disse uma vez: “Uma vida sem exame não é digna de ser vivida”. Selecionar elementos para incluir em nossas vidas é o primeiro passo desse exame. Quais elementos de sua vida são realmente essenciais para você? Quais obrigações você deve manter? Quais são as opções disponíveis para remover os tormentos que você impõe a si mesmo em sua vida? Em resumo, como você quer viver sua vida com a prática budista como um elemento proeminente? Essas escolhas dependem de você, e cada um as fará de modo diferente; mesmo os monásticos invariavelmente conseguem se apegar a algo. (No meu caso é o café. Ah, e eu gosto de manter contato com meus pais idosos e meus três filhos adultos ocasionalmente.) Isso não é uma tarefa para ser resolvida de uma vez, mas uma que deveria ser revisitada de tempos em tempos ao longo de sua carreira de praticante. Conforme sua prática se desenvolve, você sentirá um desejo de desonerar-se mais e mais.

Sua vida é uma combinação de coisas que você incluiu porque são importantes para você, obrigações que você herdou ou que provém de decisões do passado que, embora não sejam necessariamente desejáveis para você em si, estão lá para suster ou simplesmente são consequências das outras coisas que você incluiu em sua vida. Estudar o samsara é uma parte central do desenvolvimento da sabedoria budista. Porém, a maioria das pessoas terá avanço rápido e imediato porque, com simples consideração, muitas coisas simplesmente desafiarão a justificação racional de sua inclusão em qualquer estilo de vida. Vamos começar com aquilo que deveria ser fácil de justificar.

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Elementos budistas. Vamos começar com os valores budistas que poderiam ser incluídos na vida leiga.

“Existem essas quatro qualidades que trazem a felicidade e bem-estar para um leigo nas vidas que virão [isto é, o avanço espiritual, e não o material]. Quais quatro?

Ser consumado em convicção [saddha-sampada], ser consumado em virtude [sila-sampada], ser consumado em generosidade [caga-sampada], ser consumado em sabedoria [pañña-sampada].

 

E o que significa ser consumado em convicção?

 

É o caso em que um nobre discípulo tem convicção, está convencido da iluminação do Tathagata: ‘De fato, o Abençoado é um arahant, perfeitamente iluminado, consumado no verdadeiro conhecimento e conduta, bem-aventurado, conhecedor dos mundos, um líder insuperável de pessoas preparadas para serem treinadas, mestre de devas e humanos, desperto, sublime.’ A isto se denomina ser consumado em convicção.

 

E o que significa ser consumado em virtude?

 

É o caso em que um nobre discípulo se abstém de matar, se abstém de roubar, se abstém de conduta sexual imprópria, se abstém de mentir, se abstém de tomar vinho, álcool e outros embriagantes que causam a negligência. A isto se denomina ser consumado em virtude.

 

E o que significa ser consumado em generosidade?

 

É o caso em que um nobre discípulo permanece em casa com uma mente desprovida da mácula da avareza, espontaneamente generoso, mão aberta, que se delicia com a renúncia, devotado à caridade, deliciando-se em dar e compartir. A isto se denomina ser consumado em generosidade.

 

E o que significa ser consumado em sabedoria?

 

É o caso em que um nobre discípulo tem sabedoria, com a completa compreensão da origem e cessação – nobre, penetrante, que conduz ao fim do sofrimento. A isto se denomina ser consumado em sabedoria.”

 

AN 8.54

Muitas vezes a meditação está ausente das descrições tradicionais da vida leiga, mas nunca excluída. Eu penso que a razão para isso é que ela requer bastante tempo e produz melhores resultados com esforço contínuo e ininterrupto. Os suttas são cheios de referências de monges e monjas que se recolhem após sua refeição do meio dia para “a contemplação do dia”, um luxo que poucos leigos poderiam se dar. É surpreendente, no ocidente moderno onde as pessoas estão sempre ocupadas, a meditação se tornou a finalidade e totalidade da prática budista. Certamente não serei eu a desencorajar nenhum pouco que se pratique a meditação, mas gostaria de sublinhar os quatro elementos aqui que notavelmente não exigem nenhum compromisso de tempo em particular, mas que convém relembrar muitas vezes em meio a outras atividades.

A convicção, ou fé[1], é geralmente abrangida para incluir a Tríplice Jóia: Buda, Darma e Sanga. Acabamos de publicar uma série de postagens aqui sobre a fé e seu papel no budismo. Tomar os refúgios, passar tempo com os sábios e várias práticas devocionais sustentam o desenvolvimento da fé. Basta dizer que isso vai energizar muito sua prática, tornando, por exemplo, os outros três fatores listados aqui fáceis de manter e tornando você uma pessoa muito agradável de se ter por perto.

Assim como uma grande árvore banyan posta numa encruzilhada onde se encontram quatro estradas é um abrigo para os pássaros de toda a região, do mesmo modo um discípulo leigo convicto é um abrigo para muitas pessoas: monges, monjas, discípulos e discípulas leigas. ­– AN 5.38 (Saddha Sutta).

A virtude é geralmente mais definida em termos de preceitos para a conduta ética. Acompanhando estes preceitos, há o desenvolvimento da gentileza e da compaixão, motivando o benefício de outras pessoas. Essas são qualidades muito raras em nossa época atual.

A generosidade, ou dana, é provavelmente a prática budista mais fundamental. Se você deseja pegar um atalho para a felicidade, é esse: basta sair e começar a fazer algo por outras pessoas. Se torna rapidamente torna um vício porque a sensação que causa é muito agradável. A maioria das pessoas acha que tem que tomar conta de sua própria felicidade antes de se preocupar com os outros, mas é exatamente o oposto.

A generosidade é, tradicionalmente, o sangue e a vida da comunidade budista, fazendo com que templos e monastérios sejam lugares inspiradores para uma visita. No budismo, a generosidade tem uma forma institucional, expressa acima na referência a “esmolas”, na prática voluntária de apoio leigo aos monásticos. Isso é o que permite a prática em tempo integral dos monásticos, além de manter os leigos em tempos de prática intensiva de retiro. É uma expressão do sentimento: “Eu acredito no que você está fazendo e quero te apoiar.” Os monásticos oferecem um retorno na forma de ensinamentos ofertados e inspiração aos discípulos leigos; o budismo não sobreviveria muito tempo sem essa chama concentrada da prática que aquece os outros; mas a maioria dos leigos descobre que suas oferendas são recompensadas da melhor forma pela simples sinceridade, intensidade e profundidade da prática. A recíproca é verdadeira para os monásticos. Como monge e professor, minha maior recompensa não é receber esmolas, mas testemunhar que alguém ouviu os ensinamentos que ofereci e colocou-os em prática.

A sabedoria pode representar a maior realização da prática budista e é melhor desenvolvida em conjunto com uma forte prática meditativa. Mas também pode ser desenvolvida na vida cotidiana através da reflexão constante na impermanência e como sua consequência. A vida é cheia de perigos; eventualmente perderemos tudo de que gostamos, ainda que o mundo esteja constantemente se renovando. Precisamos aprender a não se prender com tanta força às coisas.

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Todos esses quatro valores budistas são apoiados pela experiência de uma única visita a templos budistas tradicionais, nos quais tradicionalmente se dão passeios em família. Essa é uma das funções primárias do dia de Uposatha: trazer as crianças, aproveitar um banquete participativo, renovar os refúgios e preceitos, ouvir uma palestra do Darma, banhar-se na torrente de generosidade e até meditar com os monásticos e praticantes leigos fortes. Essa prática budista, que tem um empurrãozinho na vida comunitária e em atividades divertidas, torna-se mais fácil de se integrar numa vida leiga ocupada. Infelizmente, a comunidade tradicional budista, que é, até onde vejo, universal na Ásia budista, tem sido negligenciada amplamente no budismo ocidental, cuja atitude é de “se construir enquanto se pratica”. Um motivo para isso pode ser a escassez de monásticos como eu, que geralmente são a fagulha que põe em movimento a máquina comunitária. Penso que Gils Fronsdal, um professor budista leigo em Redwood City, Califórnia, parece ter um entendimento do papel adequado de dana na comunidade budista e relata resultados excelentes de sua implantação. Daí pode se tirar que o desenvolvimento de comunidades budistas saudáveis é um hábito de educação. Minha sugestão para o leitor é encorajar seu próprio centro a ser custeado somente com dana e se amigar de monastérios de orientação asiática próximos de você, a despeito dos desafios linguísticos e culturais.

Obrigações. Essas são as coisas sobre as quais você pelo menos sente que não tem escolha. Ainda sim, eles podem ser fortes determinantes do modo de vida que você leve, e mesmo prender um aspirante a monástico na vida leiga contra sua vontade. Exemplos são compromissos de casamento, apoio a filhos ou pais idosos ou doentes e outros parentes, serviço militar e dívidas. Muitas pessoas ficam em choque quando ouvem pela primeira vez na história da vida do Buda que ele abandonou uma esposa e um filho recém-nascido para viver a vida santa. As circunstâncias exatas em contraste com o mio podem jamais ser esclarecidas, mas penso que essa história persiste porque funciona para abrir a possibilidade de dar suas costas às obrigações a fim de perseguir um valor maior. É aro que um budista abandone totalmente sua família, ainda mais quando sua família depende dele, mas o budismo permite que isso seja considerado. É claro que a força da lei poderia dar fim a essa ideia. É notável que, a fim de se ordenar como monástico, você tenha que estar livre de qualquer dívida e também ter a permissão expressa de seus pais.

Valores fundamentais. Além da prática budista, o que é importante para você? Importante de verdade? Essa, claro, é uma pergunta profunda e também muito pessoal. Provavelmente a lista resumida da maioria das pessoas incluiria:

  • Família;
  • Dinheiro;
  • Reputação;
  • Amizade, romance;
  • Diversão;

Seria no mínimo comum na lista de muitas pessoas:

  • Futebol;
  • Ferramentas de construção e/ou equipamentos tecnológicos;
  • Ações e projetos de caridade;
  • Realizações intelectuais e artísticas;
  • Celebridade;
  • Comida;
  • Conquista sexual;
  • Álcool, nicotina, cafeína etc.;
  • Sono;
  • Comunhão com a natureza;
  • Trabalhar duro, em compensação se divertir bastante;
  • Responsabilidade pessoal;
  • Lealdade à nação ou grupo étnico;
  • Honrarias, coragem e dar o máximo de si, para aqueles atraídos pelo serviço militar.

Pode ser um exercício útil escrever sua lista pessoal de valores. Tenha em mente que são valores e não hábitos, coisas que você sente terem um papel crítico em dar significado e sabor à sua vida.

Muitas dessas coisas serão bastante saudáveis de uma perspectiva budista, outras serão consideradas prejudiciais, tendendo ao dano e à infelicidade. Tentaremos remover algumas ervas daninhas e ajustar outras no artigo “Rejeitando e Equilibrando Elementos na Arte da Vida Leiga”. Via de regra, você pode identificar as mais problemáticas quanto mais ensimesmadas são em si. Posso imaginar que alguns de vocês possam sentir vontade de colocar na lista coisas que, num primeiro momento, parecem ser valores fundamentais, tal como fofocar sobre o cabelo de outros, apenas para se envergonhar de sequer fazer uma coisa dessas. Esteja ciente de que você provavelmente encontrará modos de justificar o que é bastante mesquinho em termos deu m valor maior, como, por exemplo, a verdade com especialização no cabelo dos outros. Provavelmente não é uma das coisas que deve constar na sua lista curta.

O bom de saber quais são seus valores é que você pode, a partir daí, começar a considera-los e reconsidera-los tendo em mente suas vantagens, suas desvantagens, como te fazem se sentir quando fazem parte integral de sua vida, que implicações eles tem em outras partes de sua vida e o que motiva seu interesse neles antes de mais nada. Essa investigação pode (e deveria) continuar por muitos anos lado-a-lado com a paz de espírito e discernimento que desenvolvem-se no decorrer da prática budista. Este é o começo do estudo do samsara. Com o tempo, você certamente descobrirá que menos e menos desses elementos valem a pena manter; elas são deixadas de lado como brinquedos velhos que numa adolescência que avança. A sabedoria budista mostra que poucas coisas valem a pena manter, mostra a desvantagem de muitas coisas, a dor do apego, o modo que essas coisas te enredam ainda mais na existência samsárica, na obrigação; são preços muito altos. Tudo está em chamas, doloroso ao toque.

Se você é como a maior parte das pessoas, haverá alguns valores que permanecerão de pé numa observação atenta. Mantê-los é sua escolha, e pode ser uma escolha confiante se você examinou esses valores de perto e descobriu que eles ainda têm valor para você. Porém, há outra dimensão do samsara para explorar: as dependências entre elementos em sua vida. Tudo que trazemos nas nossas vidas tem seu preço, às vezes um grande custo financeiro, social, em termos de saúde mental e assim por diante. Como uma corporação bem-dirigida, tendemos a externalizar os custos em nossas próprias mentes, ou seja, vemos apenas o lado atraente das coisas, mas vivemos com seu preço. Muito da carga extra de nossas vidas é o custo que pagamos pelas coisas que valorizamos. A renúncia provavelmente será um alívio bem-vindo para coisas como viagens de ida e vinda ao trabalho e à faculdade, dívidas, levar e trazer adolescentes, o telefone tocando sem parar, contas, vizinhos ranzinzas, ameaças de processo, divórcio, trabalho doméstico sem fim, mas essas coisas podem não ser tão fáceis de tirar de sua vida individualmente. Na semana que vem, daremos uma olhada nesses elementos incidentais.

Até lá considere “Quais são os valores mais fundamentais da minha vida?” Mas combine a questão com esse mantra: “Simplicidade”.

[1] No texto original, em inglês, temos “faith, mas a tradução seguiu os critérios do site Acesso ao Insight e traduziu por “convicção”, e não “fé”, que é a tradução mais comum. Nesse trecho, pretendeu-se colocar os dois para mostrar a ambiguidade do sentido de “fé” no contexto budista em relação às religiões abraâmicas. A ideia de “convicção” se aproxima mais do sentido de “sadha”, em páli (scrt. “sraddha”).  Nos artigos mencionados a seguir, manteve-se a palavra “fé”, dado o contexto dos artigos.

Traduzido por Luiz Fernando Rodrigues

Revisão: Tiago da Silva Ferreira

Links:
A Arte da Vida Leiga Parte 1
A Arte da Vida Leiga Parte 2

5 comentários em “A Arte da Vida Leiga (Parte III)

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