A Arte da Vida Leiga (Parte IX)

A maior parte dos ensinamentos do Buda foi dada a monásticos. Mas e quanto aos praticantes leigos? Nessa série de estudos que o blog Budismo & Sociedade está publicando continuamente, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre a arte de viver do budista leigo. Nesse nono capítulo, o monge utiliza o exemplo de uma família de leigos do folclore chinês para ilustrar o comportamento exemplar de um leigo.

De Bhikkhu Cintita Dinsmore

O discípulo leigo Pang é o modelo mais evidente do leigo iluminado no folclore zen  (ou chán) chinês do século XVIII. Ele havia sido um mercador rico com uma esposa e filha que estudou os sutras e aspirou ao progresso no caminho budista. Sua esposa e filha compartilhavam as mesmas aspirações. Na verdade, sua filha é o modelo pristino de mulher iluminada, já que ela, desde o princípio, tinha um entendimento mais profundo que seu pai. Contudo, é seu pai, o discípulo leigo Pang, que é mais citado na China patriarcal.

Cintita Leigo

O primeiro passo que os três deram foi juntar toda sua riqueza num barco, remar até o centro do lago e jogá-la toda pela borda fora para que não se tornasse um fardo. Eles então se mantiveram pelo feitio e venda de utensílios de bambu, viajando de lugar em lugar e frequentemente visitando monastérios.

 

Selecione. A família Pang adotou totalmente os ensinamentos e práticas budistas. Porém, eles também valorizaram um ao outro e sua vida como uma família. Eles selecionaram pouco, mas claramente a família é algo que valorizaram independentemente das preocupações da prática budista. Nesse sentido, não eram candidatos à ordenação monástica.

 

Rejeite. Quer sua vida como mercadores tenha sido sempre honesta ou não, não fica claro. Mas eles tomaram para si uma profissão que facilmente se prestou a virtude e integridade. Não é dito que tenham gasto seu tempo bebendo ou festejando, indo a espetáculos, fofocando…

 

Equilibre. A família e sua pequena manufatura e venda de bambu são suas atividades primárias fora da prática budista. Podemos imaginar que eles prontamente trouxeram essas coisas para o contexto da prática budista através do seu engajamento hábil, atento e devotado. Muito se diz que o budismo não distingue o sagrado do secular. O equilíbrio é a razão: nossa pratica é, tanto quanto pudermos, tratar o secular como sagrado. Essa é a prática do equilíbrio.

 

Simplifique. O ato simbólico primário dessa história é jogar a riqueza no lago. Falando de modo prático, faria mais sentido doar todo o dinheiro, mas na história se ilustra de forma dramática o imperativo de se livrar de toda complicação e distração.

 

Agora, a simplificação estava implícita em minhas discussão sobre selecionar, quando sugeri a você priorizar seus valores e ser parco em sua seleção. Eu repito o mesmo no passo final, porque isso nunca é demais enfatizar esse ponto. Mesmo que você tenha selecionado uma pequena quantidade de coisas que você pretende manter além da prática budista, mesmo que rejeite tudo que é carmicamente prejudicial, e, portanto, não cabe bem numa vida budista, mesmo que equilibre o que você selecionou integrando isso em sua prática budista, se for como a maioria das pessoas, ainda sim você provavelmente ainda acumulará novas complicações, quase sem saber.

 

Uma analogia adequada é o acúmulo de decorações domésticas. Se você entra num museu, há muito espaço entre artefatos. Os artefatos podem ser pinturas ou esculturas, mas, na verdade, podem ser também decorações domésticas, tais como artigos de metal de Paul Revere e mobílias do Rei Luís. Se você entra num antiquário, está tudo amontoado muito junto e é difícil caminhar. Com qual dos dois sua casa se parece? A maioria das pessoas se muda para uma casa com algo como um museu em mente, mas em pouco tempo suas casas ficam mais parecidas com a loja de bugigangas. Muitas vezes não percebem a mudança até que decidem se mudar e perguntam por que precisam de um caminhão tão grande. Não é um fator da natureza dos artefatos, mas sim quantos deles se acumulam. Em geral, mais não significa melhor. É o mesmo com atividades a que nos propomos, e com atividades da mente. O entulho os mantém eternamente confusos, torna a atenção plena difícil, deixa pouco espaço para o que é realmente importante e tende a ser uma manifestação de um certo nível de ânsia e desejo por distração. Permita-me que eu repita o meu conselho de algumas semanas atrás: se você quer levar a simplificação de sua vida a sério, estude Simplicidade Voluntária, seja online ou nos livros sobre esse assunto.

 

O propósito de um estilo de vida budista é a renúncia. A renúncia não é privação, e sim remover aspectos egoístas da vida ordinária, que buscam a vantagem pessoal, gratificação e reforço, que servem como o parque de diversões do ego. A seleção abre espaço para aspectos de nossas vidas que podem não caber nessas exigências, mas que ainda são valiosos para nós ou uma questão de obrigação. Os outros três passos visam se desfazer do ego. A rejeição remove os excessos mais óbvios do ego, ou aquelas condições que levam a seus excessos. O equilíbrio transforma nosso relacionamento com os elementos em nossas vidas para que nossa atitude não seja a de um mestre para com seu servo. A simplificação remove os entulhos que causam apenas distração.

 

Agora, isso tudo não quer dizer que uma vida budista não possa ser ocupada. Se você passar seu tempo fazendo compras e trocando os canais da TV, isso é entulho. Se você passa seu tempo ensinando crianças a ler ou se voluntariando a plantar árvores num parque ou protestando contra uma guerra, isso é benéfico, generoso, altruísta e algo a ser encorajado como uma manifestação de gentileza e compaixão, assim como renúncia. (Uma advertência: assim como mudamos nossas relações em direção ao altruísmo, podemos mudá-las no sentido oposto. É muito fácil tornar a caridade algo egoísta, usando-a para angariar reputação, por exemplo.) Nós simplificamos a fim de abrir espaço para a atmosfera calma que se harmoniza com a prática contemplativa budista, e por todo o bem que podemos fazer ao mundo com o tempo e energia que economizamos.

 

Tudo isso não implica que uma vida budista seja, de algum modo, uma fuga do mundo. Um erro comum é que a prática leiga é “no mundo”, enquanto que a prática monástica é “fora do mundo”. Isso é, no fundo, uma desculpa para não mudar nenhuma circunstância externa em sua vida, para continuar vivendo sua vida do mesmo modo de sempre, mas talvez com mais atenção plena. Você poderia supostamente matar animais com atenção, ficar bêbado com atenção, brigar com seu colega de serviço com atenção, vender seguros desnecessários com atenção. Ninguém escapa do mundo. A essência da vida budista é viver no mundo responsavelmente: finalmente se tornar adulto, reformar aquelas partes da vida que nos tiram do rumo, que são carmicamente prejudiciais, de modo que a trajetória geral de sua vida seja em direção ao Nirvana.

 

O concelho que eu dei nessa série de textos é para inclinar seu estilo de vida na direção ao estilo de vida monástico. O quanto você fará disso é sua escolha, mas será um fator determinante em seu progresso ao longo do caminho. É exatamente o mesmo com a prática de meditação: você pode aprender a meditar. O quanto você medita, daí, depende de você, mas será um fator determinante (secundário em relação ao estilo de vida!) de seu progresso ao longo do caminho. As escrituras primitivas testemunham em favor do progresso de discípulos leigos no caminho, até mesmo a ponto de atingir o objetivo final. Mas isso não surge casualmente. O importante da arte da vida leiga é que, em geral, ela não exclui o que você já leva a sério em sua vida, como, por exemplo, sua família. Ela apenas se edifica ao redor dessas coisas.

 

Tradução: Luiz
Revisão: Tiago

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