De Ajahn Sujato
O pior a respeito desse título é que eu sequer estou brincando.
Como estudantes dos suttas estão bem cientes e um pouco constrangidos, os suttas descrevem o Buda como possuindo 32 marcas especiais, consideradas como sinais de um Grande Homem. A maioria delas é visível para um observador atento, mas duas estão ocultas: a natureza do pênis e o tamanho da língua.
Quando o Buda percebe que alguém quer checar seu equipamento, ele usa seus poderes psíquicos para revelar seus órgãos genitais a essa pessoa. Mesmo tentando ser o mais respeitoso possível ao discutir sobre o Buda, ainda é um pouco difícil levar isso a sério.
Quase todos os tradutores apresentaram a descrição do pênis do grande homem como se ele fosse “fechado em uma bainha” ou algo similar. Isto baseia-se no comentário, que diz:
Kosohiteti vatthikosena paṭicchanne
“Em uma bainha” significa escondido por uma capa de bainha
A palavra vatthi, aqui, geralmente significa “bexiga”, então o significado nesse caso claramente é bolsa de pele. Se isto significa um super-prepúcio ou um escroto estendido, deixarei a cargo da sua imaginação.
No entanto, uma frase semelhante no Páli é encontrada em outro lugar, em Ja 526. Esta é uma daquelas Jatakas que lida com questões lascivas e, por causa disso, não foi totalmente traduzida para o inglês. Você pode ler a versão puritana em inglês aqui, e a versão sem censura em alemão aqui (O Google Translator funciona razoavelmente bem).
A história diz que um rapaz ingênuo estava sendo seduzido por uma mulher muito mais mundana. Ele vê suas partes íntimas e fica chocado, não tendo ideia do que eram. Ele pergunta:
Kose nu te uttamaṅgaṃ paviṭṭhaṃ?
O seu “membro superior” está abrigado em uma cavidade?
A palavra kosa aqui é a mesma usada na descrição do grande homem. Embora neste contexto essa palavra é geralmente traduzida de acordo com um dos seus significados, “bainha”, este não é o seu sentido primário ou mais comum. Mais comumente significa um depósito ou recinto, e parece ter um significado geral de “cavidade”. E claramente este é o sentido requerido aqui.
Na descrição do grande homem, o termo completo é kosohita. O segundo elemento, ohita, normalmente se refere a algo que foi depositado ou colocado em alguma coisa. Por isso se encaixa melhor com a ideia de que os genitais foram “colocados em uma cavidade” ao invés de serem “cobertos com uma bainha”.
Não há “bainha” que cresça ao redor do pênis. Ao invés disso, o pênis foi afastado para uma cavidade.
Dado que o único caso de formulação similar é explicitamente a descrição de uma vulva, e dá-se num contexto de confusão de gênero, eu argumentaria que o ônus da prova está no comentário que estabelece que um sentido significativamente diferente está pretendido aqui. Mas até onde sei, não há tal prova.
Sugiro que a semelhança com os genitais femininos levou os comentários [pós canônicos] a oferecerem uma leitura mais masculinizada. Os comentários pretendem exagerar a masculinidade do Buda. Mas parece que o propósito original do texto era estabelecer uma ambiguidade de gênero.
É inevitável que, seja qual for a leitura, de acordo com os textos primitivos, o Buda não tinha genitais “normais”. E a única leitura realmente apoiada por um texto canônico é que o Buda era intersexual e seus órgãos genitais pareciam os de uma mulher.

A conotação espiritual era, certamente, que o Despertar estava além do gênero.
Que tal sentido foi incorporado nas características do “grande homem” não é acaso. Uma das características essenciais do mito, quase uma característica definidora, é que ele abrange ambiguidades e contradições. Contar uma história, ou várias histórias, nos permite ver as coisas de diferentes perspectivas. Em vez de resolver um problema de uma forma ou de outra, desenvolvemos empatia e podemos apreciar múltiplas perspectivas diferentes, sem insistir em nenhuma delas como definitivas. O mito se põe resolutamente em oposição aos binários de verdadeiro ou falso.
De fato, essa perspectiva é essencial nesse mesmo contexto. O mito do grande homem nos diz que ele deveria perseguir um dos dois destinos: tornar-se um grande rei ou atingir o Despertar. Estes são os dois caminhos oferecidos em inúmeros mitos em todo o mundo, começando com o mito mais antigo que temos, o Gilgamesh.
Não há nenhuma tentativa de reconciliar esses dois caminhos, ou de descobrir como ser desperto enquanto moramos em casa, ou mesmo argumentar que um é melhor que o outro. Eles estão ali, irreconciliáveis, mas reais. Argumentei em outro lugar que o epíteto vessantara aplicado ao Buda significa “em entre todos”, aquele que se distingue de todos os binários. Assim, o Buda, escolhendo o caminho da renúncia, torna-se aquele que transcende todas as dualidades. Isso é um paradoxo; mas apenas para a lógica, não para o mito.
Consequentemente, o grande homem é alguém que, num sentido muito real, não é mais um “homem”. A história nos mostra que muitas culturas, desesperadas para impor suas dualidades em um mundo que não as compartilha, cortam e mutilam os genitais de bebês que parecem não estar em conformidade. Se um bebê com genitais totalmente retraídos nasceu em tal cultura, eles podem ter que sofrer uma cirurgia não consensual. Felizmente, a antiga Índia não fazia parte de tal cultura. Nos textos [budistas] primitivos, baseados em uma tradição desconhecida, preservava-se a ideia de que a verdadeira grandeza significava transcender noções de identidade binária e simbolizava-se isso enfatizando a ambiguidade dos órgãos genitais.
Original em inglês: https://discourse.suttacentral.net/t/the-politics-of-the-buddha-s-genitals/4876/34
Tradução: Tiago da Silva Ferreira
Um comentário em “A política dos genitais do Buda”