À medida que o budismo encontra a modernidade, enfrenta preconceitos generalizados, tanto religiosos quanto anti-religiosos, e é comum que todos aqueles com tais preconceitos deturpem o budismo, intencionalmente ou não. Eruditos respeitáveis do budismo, tradicionais e modernos, todos concordam que o Buda histórico ensinou uma visão de karma e renascimento que era bem diferente das abordagens anteriores dessas ideias. Além disso, seus ensinamentos sobre a natureza e as origens do sofrimento, assim como a libertação, são expressos inteiramente dentro do contexto do renascimento. Libertação é precisamente a liberdade do ciclo de nascimento e morte que é o samsara. Mas para muitas pessoas contemporâneas atraídas pelo budismo, os ensinamentos sobre carma e renascimento não se adequam, então elas enfrentam um dilema. Uma opção legítima é simplesmente adotar as teorias e práticas de várias tradições budistas que elas consideram convincentes e benéficas e deixar as outras de lado. Uma opção ilegítima é reinventar o Buda e seus ensinamentos com base em seus próprios preconceitos. Este, infelizmente, é o caminho seguido por Stephen Batchelor e outras pessoas afins que têm a intenção de remodelar o Buda em suas próprias imagens.
A contracapa do livro mais recente de Batchelor, intitulado Confissões de um Ateu Budista, descreve seu trabalho como “uma recuperação impressionante e inovadora do Buda histórico e de sua mensagem”. Uma maneira disso ser verdade, seria seu livro ser baseado em uma recente descoberta de antigos manuscritos budistas, comparáveis ao que os Manuscritos do Mar Morto ou à biblioteca de Nag Hammadi são para o cristianismo. Mas não é assim. Outra maneira seria se suas alegações se baseassem em pesquisas históricas sem precedentes feitas por um estudioso altamente qualificado de antigas línguas e história indianas. Mas nenhuma pesquisa profissional ou bolsa de estudos está em evidência neste livro. Em vez disso, suas afirmações sobre o Buda histórico e seus ensinamentos são quase inteiramente especulativas, à medida que ele avança na tentativa de recriar o budismo para se adequar às suas visões correntes.
Para se ter uma ideia da abordagem do budismo de Batchelor, um agnóstico convertido ao ateísmo, não é necessário ir além do seu livro anterior, Budismo sem crenças. Afirmando abraçar a definição de agnosticismo de Thomas Huxley como o método de seguir a razão o mais longe possível, ele adverte seus leitores: “Não finja que há conclusões certas que não são demonstradas ou não são demonstráveis”1 . Ele então explica quem o Buda realmente era e o que ele realmente ensinava, muitas vezes em oposição direta aos ensinamentos atribuídos ao Buda por todas as escolas do budismo. Se nisso ele está seguindo o dito de Huxley, isso implicaria que Batchelor alcançou pelo menos a capacidade de enxergar diretamente o passado, se não a própria onisciência completa.
Alguns podem acreditar que as liberdades que Batchelor toma na redefinição dos ensinamentos do Buda são justificadas, já que ninguém sabe o que ele realmente ensinou, então a opinião de uma pessoa é tão boa quanto a de outra. Este ponto de vista ignora o fato de que gerações de budistas tradicionais, começando com o primeiro conselho budista logo após a morte do Buda, tiveram o cuidado de preservar com precisão seus ensinamentos. Além disso, a moderna erudição budista secular também aplicou suas formidáveis habilidades literárias, históricas e arqueológicas na tentativa de determinar os ensinamentos do Buda. Apesar das muitas diferenças importantes entre as escolas de budismo Theravada, Mahayana e Vajrayana, os budistas tradicionais de todas as escolas reconhecem os suttas em Páli como sendo os registros mais incontestáveis dos ensinamentos do Buda.
Em face de tal consenso por estudiosos profissionais e contemplativos ao longo da história, é simplesmente uma expressão de arrogância descartar suas conclusões simplesmente devido às próprias preferências ou “intuição” (o que é muitas vezes um preconceito disfarçado). Ignorar as evidências mais convincentes do que o Buda ensinou e substituí-las por afirmações contrárias a tais evidências é indefensável. E quando essas asserções seculares, ateístas, simplesmente correspondem às suposições materialistas da modernidade, é simplesmente ridículo atribuí-las ao Buda histórico.
Por exemplo, ao contrário de toda evidência histórica, Batchelor escreve que o Buda “não alegou ter tido experiência que lhe concedeu um conhecimento privilegiado e esotérico de como o universo funciona”. Para citar apenas duas das inumeráveis declarações do cânone Páli relativas ao escopo de conhecimento do Buda: “O que quer que seja neste mundo – com seus devas, maras e brahmas, suas gerações completas com contemplativos e sacerdotes, príncipes e homens – é visto, ouvido, sentido, reconhecido, alcançado, buscado, ponderado pelo intelecto que foi totalmente despertado pelo Tathagata. Assim, ele é chamado de Tathagata”.2 Em uma veia similar, lemos que “o mundo e seu surgimento são totalmente conhecidos por um Tathagata e ele está libertado de ambos; ele também sabe o final e o caminho. Ele fala do seu jeito; ele é inconquistado no mundo”.3
Batchelor traz para sua compreensão do budismo uma forte antipatia em relação à religião e às instituições religiosas, e esse preconceito permeia todos os seus escritos recentes. Em vez de simplesmente rejeitar elementos dos ensinamentos do Buda que o classificariam como religioso – o que seria perfeitamente legítimo – Batchelor toma o passo ilegítimo de negar que o Buda tenha ensinado algo que seria considerado religioso pelos padrões ocidentais contemporâneos, afirmando que “não existe nada particularmente religioso ou espiritual a respeito desse caminho”. Em vez disso, os ensinamentos do Buda seriam uma forma de “agnosticismo existencial, terapêutico e libertador ” que foi “refletido através dos símbolos, metáforas e imagens do mundo dele”.4 Sendo um agnóstico ele mesmo, Batchelor substitui a enorme quantidade de evidências textuais de que o Buda era tudo, menos um agnóstico, e recria o Buda à sua própria imagem, promovendo exatamente aquilo que o próprio Batchelor acredita, ou seja, uma forma de agnosticismo existencial, terapêutico e libertador.
Uma vez que Batchelor descarta toda conversa sobre renascimento por ser uma perda de tempo, ele projeta essa visão em sua imagem do Buda, declarando que ele considerava “especulações sobre vidas passadas e futuras como sendo apenas mais uma distração”. Esta alegação contradiz totalmente as incontáveis vezes em que o Buda falou da imensa importância do renascimento e do carma, que estão no cerne de seus ensinamentos, conforme estão registrados nos suttas em Páli. Batchelor é um dos muitos professores zen que hoje consideram vidas passadas e futuras como uma mera distração. Mas ao adotar essa atitude, eles vão contra os ensinamentos de Dogen Zenji, fundador da escola Soto do Zen, que abordou a importância dos ensinamentos sobre renascimento e carma em sua antologia principal, Tesouro do Olho do Dharma Verdadeiro (Shobogenzo). Em seu livro Fé Profunda em Causa e Efeito (Jinshin inga), ele critica os mestres zen que negam karma, e no Karma dos Três Tempos (Sanji go), ele entra em mais detalhes sobre esse assunto.5
Quanto à fonte dos ensinamentos budistas sobre o renascimento, Batchelor especula: “Ao aceitar a ideia do renascimento, o Buda refletiu a visão de mundo de seu tempo.” No Kalama Sutta, o Buda aconselha outros a não aceitarem crenças simplesmente porque muitas pessoas aderem a elas, ou porque elas concordam com uma tradição, boato, escritura ou especulação. Então Batchelor, na verdade, acusa o Buda de não seguir seu próprio conselho! Na realidade, os relatos detalhados do Buda sobre o renascimento e o karma diferiam significativamente dos pontos de vista de outros pensadores indianos sobre esses assuntos; e dada a ampla gama de visões filosóficas durante sua época, não havia uma “visão de mundo de seu tempo” uniformemente aceita.
Em vez de adotar essa ideia a partir de um mero boato, o Buda declarou que, na primeira vigília da noite de sua iluminação, depois de purificar sua mente com a conquista de samadhi, obteve “conhecimento direto” dos detalhes específicos de muitas milhares de suas próprias vidas passadas ao longo de muitos períodos de contração e expansão cósmica. Na segunda vigília da noite, ele observou os múltiplos renascimentos de inúmeros outros seres sencientes, observando as conseqüências de seus atos hábeis e inábeis de uma vida para a próxima. Durante a terceira vigília da noite, ele adquiriu conhecimento direto das Quatro Nobres Verdades, revelando as causas de obter libertação deste ciclo de renascimento.6 Embora haja amplas evidências de que o Buda alegou ter conhecimento direto do renascimento, não há nenhuma referência textual ou evidência histórica de que ele tenha simplesmente adotado alguma visão pré-existente, que seria antitética a toda a sua perspectiva de não aceitar teorias simplesmente porque são comumente aceitas. Não haveria nada de errado se Batchelor simplesmente rejeitasse a autenticidade da iluminação do Buda e o núcleo de seus ensinamentos, mas ao invés disso ele rejeita os relatos mais confiáveis da visão do Buda e a substitui pela sua própria, depois projeta-a no Buda que existe apenas em sua imaginação.
Talvez a questão mais importante que os secularistas ignoram em relação aos ensinamentos atribuídos ao Buda é que existem métodos contemplativos – praticados por muitas gerações de ardentes buscadores da verdade – para colocar muitos, se não todos, desses ensinamentos à prova da experiência. Em especial, as afirmações budistas relativas à continuidade da consciência individual após a morte e ao renascimento podem ser exploradas através da prática do samadhi, que aprofunda além da dimensão grosseira da consciência contingente ao cérebro em direção a um continuum mais sutil de consciência que supostamente continua de uma vida à próxima.7 Tal treinamento em samadhi não requer crença prévia em reencarnação, mas requer grande determinação e zelo no refinamento das habilidades de atenção. Tal treinamento rigoroso em tempo integral pode exigir meses ou até anos de esforço disciplinado, e é aí que a ciência budista da mente realmente é projetada. Se alguém está contente com suas próprias afirmações dogmáticas, materialistas – contente em aceitar a suposição não-corroborada de que todos os estados de consciência são produzidos pelo cérebro -, então esta pessoa está fadado a permanecer ignorante sobre as origens e a natureza da consciência. Mas se este alguém está determinado a progredir de um estado de agnosticismo – não sabendo o que acontece na morte – para o conhecimento direto das dimensões mais profundas da consciência, então o budismo fornece múltiplas vias de descoberta experiencial. Muitos podem acolher esta perspectiva como uma alternativa revigorante à aceitação cega de pressupostos materialistas sobre a consciência que não se prestam nem à confirmação nem à rejeição através da experiência.
Batchelor conclui que, uma vez que diferentes escolas budistas variam em suas interpretações dos ensinamentos de Buda em resposta às questões da natureza daquilo que renasce e como esse processo ocorre, todas as visões delas são baseadas em nada mais que especulação.8 Cientistas em todos os campos de investigação comumente diferem em suas interpretações das descobertas empíricas, portanto, se esse fato invalida os ensinamentos budistas, ele deveria igualmente invalidar descobertas científicas. Embora na visão dele o budismo tenha começado de forma agnóstica, “tendeu a perder sua dimensão agnóstica ao tornar-se institucionalizado como uma religião (isto é, um sistema de crença revelado e válido para todos os tempos, controlado por um corpo de sacerdotes de elite)”.9 Não há nenhuma evidência de que o budismo tenha sido agnóstico, quaisquer afirmações sobre como ele perdeu esse status não passam de especulações infundadas, impulsionadas pelo viés filosófico que ele traz ao budismo.
Como um budista agnóstico, Batchelor não considera os ensinamentos do Buda como uma fonte de respostas para as questões de onde viemos, para onde vamos ou o que acontece após a morte, independentemente dos extensos ensinamentos atribuídos a Buda em relação a cada um desses temas. Em vez disso, ele aconselha os budistas a buscar tal conhecimento naquilo que ele considera territórios apropriados: astrofísica, biologia evolutiva, neurociência e assim por diante. Com este conselho, ele revela ser um membro devoto da congregação da Igreja Científica de Thomas Huxley, se refugiando na ciência como a única maneira verdadeira de responder a todas as questões mais profundas sobre a natureza humana e o universo como um todo. Ironicamente, um número crescente de cientistas cognitivos de mente aberta está procurando colaborar com os contemplativos budistas no estudo multi-disciplinar e transcultural da mente. Os métodos budistas e científicos de investigação têm suas forças e limitações, e muitos que estão ansiosos para encontrar respostas para perguntas de onde viemos, para onde estamos indo ou o que acontece depois da morte reconhecem que o budismo tem muito a oferecer nesse sentido. A posição de Batchelor, ao contrário, falha em notar as limitações da ciência moderna e os pontos fortes do budismo em relação a tais questões, dessa forma, o fluxo da história está fadado a deixá-lo para trás.
Tendo se identificado como um seguidor agnóstico de Huxley, Batchelor passa a fazer uma declaração após a outra a respeito dos limites da consciência humana e da natureza última da existência humana e do universo como um todo, como se ele fosse o mais completo dos gnósticos. Uma característica central da meditação budista é o cultivo de samadhi, pelo qual os desequilíbrios atencionais de inquietação e letargia são gradualmente superados através de um treinamento rigoroso e contínuo. Mas em referência à vacilação da mente, da inquietação à letargia, Batchelor responde: “Quantidade nenhuma de perícia meditativa do Oriente místico resolverá este problema, porque tal inquietação e letargia não são meros lapsos mentais ou físicos, mas reflexos de uma condição existencial.10 Adeptos contemplativos de múltiplas tradições, incluindo o hinduísmo e o budismo têm refutado essa afirmação há milhares de anos, e agora também tem sido refutada pela moderna pesquisa científica.11 Mas Batchelor está tão convencido de suas próprias ideias preconcebidas em relação às limitações da mente humana e da meditação que ignora todas as evidências contrárias.
Embora há incontáveis referências nos discursos do Buda referindo-se ao entendimento do vazio, Batchelor afirma: “O vazio… não é algo que ‘entendemos’ em um momento de insight místico que ‘descortina’ uma realidade transcendente oculta que misteriosamente sustenta o mundo empírico ”. Ele acrescenta: “ não podemos nos descolar da linguagem e da imaginação mais do que de nossos corpos ”.12 Os contemplativos budistas ao longo da história alegadamente tem experimentado estados de consciência que transcendem a linguagem e os conceitos como resultado de sua prática de meditação de insight. Mas Batchelor descreve essa prática como, ao contrário, um estado de perplexidade no qual a pessoa é dominada por “reverência, encantamento, incompreensão, choque”, durante as quais não “apenas a mente, mas todo o organismo se sente perplexo”.13
O relato de Batchelor da meditação descreve as experiências daqueles que falharam em acalmar a inquietação e a letargia de suas próprias mentes através da prática do samadhi, e falharam em perceber o vazio ou transcender a linguagem e conceitos através da prática de vipasana. Em vez de reconhecê-los como fracassos, ele os anuncia como triunfos e, sem um fragmento de evidência de apoio, os atribui a um budismo que não existe em lugar algum a não ser em sua imaginação.
Embora Batchelor tenha se declarado agnóstico, tais proclamações sobre os verdadeiros ensinamentos de Buda e sobre a natureza da mente humana, do universo e da realidade última sugerem que ele assumiu para si o papel de um gnóstico da mais alta ordem. Em vez de apresentar um budismo sem crenças, sua versão está saturada de suas próprias crenças, muitas delas baseadas apenas em sua própria imaginação. O chamado agnosticismo de Batchelor é totalmente paradoxal. Por um lado, ele rejeita uma multidão de crenças budistas baseadas nas fontes textuais mais confiáveis, enquanto, ao mesmo tempo, confiantemente faz uma afirmação após a outra, sem jamais apoiá-las com evidências demonstráveis.
No livro mais recente de Batchelor,14 ele se refere a si mesmo mais como ateu do que agnóstico, e quando perguntei se ele ainda mantém as visões acima expressas em seu livro publicado treze anos atrás, ele respondeu que não mais considera os ensinamentos do Buda como agnósticos, mas sim pragmáticos.15 Não é uma surpresa que, ao mudar sua auto-imagem de agnóstica para ateu, a imagem que ele projeta do Buda mude de acordo. Em suma, seus pontos de vista sobre a natureza do Buda e seus ensinamentos são muito mais um reflexo de si mesmo e de seus próprios pontos de vista do que de qualquer um dos relatos históricos mais confiáveis da vida e dos ensinamentos do Buda.
Em sua passagem do agnosticismo para o ateísmo, Batchelor se aproxima da posição de Sam Harris, que se dedica ao ideal da ciência que destrói a religião. Em seu livro Letter to a Christian Nation, Harris proclama que o problema da religião é o problema do dogma, em contraste com o ateísmo, que ele diz “não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é simplesmente uma admissão do óbvio ”.16 Essa, é claro, é a atitude de todos os dogmáticos: eles têm tanta certeza de suas crenças que consideram que qualquer um que discorda deles é tão estúpido ou ignorante que não consegue reconhecer o óbvio.17
Em seu artigo “Killing the Buddha” Harris compartilha seus conselhos com a comunidade budista, afirmando tal qual Batchelor: “A sabedoria do Buda está atualmente presa dentro da religião do budismo”, e vai mais longe ao declarar que “simplesmente se auto-intitular de ‘budista’ já é ser cúmplice da violência e da ignorância do mundo a um nível inaceitável”. Seguindo a mesma lógica, Harris, como ateu declarado, deve ser cúmplice da violência monstruosa dos regimes comunistas por toda a Ásia, que com base no dogma do ateísmo tentou destruir todas as religiões e assassinar seus seguidores. Embora Harris tenha recentemente se distanciado do rótulo de “ateu”, ele ainda insiste que a fé religiosa pode ser a força mais destrutiva do mundo. É muito mais razoável, no entanto, afirmar que a ganância, o ódio e a ilusão são as forças mais destrutivas da natureza humana; e teístas, ateus e agnósticos são igualmente propensos a essas aflições mentais.
Harris não apenas afirma ter o que equivale a um tipo de visão gnóstica dos verdadeiros ensinamentos do Buda, ele também afirma saber o que a maioria dos budistas consegue ou não perceber: “Se a metodologia do budismo (preceitos éticos e meditação) revelar verdades genuínas sobre a mente e o mundo fenomenal – verdades como vazio, abnegação e impermanência – essas verdades não são nem um pouco “budistas”. Sem dúvida, os praticantes mais sérios da meditação percebem isso, mas a maioria dos budistas não”18. No rastro da indescritível tragédia das tentativas dos regimes comunistas de aniquilar o budismo da face da terra, parece um golpe inesperado quando indivíduos que foram instruídos por professores budistas e professam simpatia pelo budismo parecem decididos a terminar o que os comunistas deixaram incompleto.
O atual domínio da ciência, da educação e da mídia secular pelo materialismo científico colocou em dúvida muitas das teorias e práticas das religiões do mundo. Esta situação não é sem precedente histórico. No tempo da República de Weimar, Hitler ofereceu o que parecia ser uma fé secular vital no lugar dos credos desacreditados da religião, Lenin e Stalin fizeram o mesmo na União Soviética, e Mao Zedong seguiu o exemplo na China. Hugh Heclo, ex-professor de governação da Universidade de Harvard, escreve sobre essa tendência: “Se a religião tradicional fica ausente da arena pública, é improvável que as religiões seculares satisfaçam a busca do homem por significado… Foi uma fé ateísta no homem como criador de sua própria grandeza que esteve no coração do comunismo, do fascismo e de todos os horrores que desencadearam no século XX. E foram os adeptos das religiões tradicionais – Martin Niemöller, C.S. Lewis, Dietrich Bonhoeffer, Reinhold Niebuhr e Martin Buber – que muitas vezes alertaram muito claramente que a tragédia viria da tentativa de construir a própria versão do homem da Nova Jerusalém na Terra.”19
Enquanto Batchelor se concentra em substituir os ensinamentos históricos do Buda por sua própria visão secularizada e Harris se volta contra o sofrimento infligido à humanidade por dogmáticos religiosos, ambos tendem a ignorar o fato de que Hitler, Stalin e Mao Zedong causaram mais derramamento de sangue, justificado por suas ideologias seculares, do que todas as guerras religiosas que as precederam ao longo da história humana.
Não estou sugerindo que Batchelor ou Harris, que são homens decentes e bem-intencionados, sejam de algum modo semelhantes a Hitler, Stalin ou Mao Zedong. Mas estou sugerindo que a deturpação do budismo de Batchelor é paralela à propaganda comunista anti-budista chinesa; e que o holocausto budista infligido por múltiplos regimes comunistas por toda a Ásia durante o século XX foi baseado e justificado por propaganda virtualmente idêntica à raivosa e anti-religiosa controvérsia de Harris.
O comentarista budista Theravada, Buddhaghosa, refere-se a “inimigos distantes” e “inimigos próximos” de certas virtudes, a saber, bondade amorosa, compaixão, alegria empática e equanimidade. Os inimigos distantes de cada uma dessas virtudes são vícios que são diametralmente opostos às suas virtudes correspondentes, e os inimigos próximos são fac-símiles falsos. O inimigo distante da bondade amorosa, por exemplo, é a malícia, e o da compaixão é a crueldade. O inimigo próximo da bondade amorosa é o apego egocêntrico, e o da compaixão é o pesar ou o desespero.20 Para traçar um paralelo, os regimes comunistas empenhados em destruir o budismo da face da terra podem ser chamados de inimigos distantes do budismo, pois são diametralmente opostos a tudo o que o budismo representa. Batchelor e Harris, por outro lado, apresentam-se como sendo simpáticos ao budismo, mas suas visões da natureza dos ensinamentos do Buda são fac-símiles falsos de tudo aquilo que foi transmitido reverentemente de uma geração para a outra desde a época do Buda. Por mais benignas que sejam suas intenções, seus escritos podem ser considerados “inimigos próximos” do budismo.
Crianças com tendências de apego ao isolamento tendem a evitar pais e cuidadores – não mais buscando conforto ou contato com eles – e isso se torna especialmente nítido após um período de ausência. As pessoas de hoje que abraçam a ciência, juntamente com as crenças metafísicas do materialismo científico, afastam-se das crenças e instituições religiosas tradicionais, não mais buscando conforto ou contato com elas; e aqueles que abraçam a religião e se recusam a ser doutrinados por vieses materialistas geralmente perdem o interesse pela ciência. Essa tendência é vista com grande perplexidade e consternação pela comunidade científica, muitos dos quais estão convencidos de que são totalmente objetivos, imparciais e livres de crenças que não são sustentadas por evidências empíricas.
O ideal de Thomas Huxley das crenças e da instituição do Cientificismo Eclesial atingindo a “dominação sobre todo o domínio do intelecto” está sendo promovida por agnósticos e ateus como Batchelor e Harris. Mas, se quisermos encontrar a visão budista da realidade, devemos primeiro deixar de lado todos os nossos preconceitos filosóficos, sejam eles teístas, agnósticos, ateus ou outros. Então, através do estudo crítico e disciplinado das fontes mais confiáveis dos ensinamentos do Buda, guiados por amigos e professores espirituais qualificados, seguidos por uma prática rigorosa e sustentada, podemos encontrar a visão budista da realidade. E com esse encontro com nossa própria natureza verdadeira, podemos perceber a liberdade através da nossa própria experiência. Esse é o fim do agnosticismo, pois passamos a conhecer a realidade como ela é e a verdade nos libertará.
B. Alan Wallace é um autor americano, tradutor, professor, pesquisador, intérprete e praticante budista interessado nas interseções de estudos da consciência e disciplinas científicas, como psicologia, neurociência cognitiva e física.
Leia a resposta de Stephen Batchelor a Wallace em “Uma carta aberta para B. Alan Wallace.”
Stephen Schettini oferece sua perspectiva no diálogo entre Wallace e Batechelor em “An Old Story of Faith and Doubt: Reminiscences of Alan Wallace and Stephen Batchelor.”
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1. Stephen Batchelor, Buddhism without Beliefs: A Contemporary Guide to Awakening. (New York: Riverhead Books, 1997), 17-18.
2. Itivuttaka 112
3. Aṅguttara Nikāya II 23
4. Stephen Batchelor, Buddhism without Beliefs, 10, 15.
5. Yuho Yokoi, Zen Master Dogen: An Introduction with Selected Writings (New York: Weatherhill, 1976).
6. Majjhima Nikāya 36: http://www.accesstoinsight.org/ptf/buddha.html
7. Buddhaghosa, The Path of Purification, trans. Ñāṇamoli Bhikkhu (Kandy: Buddhist Publication Society, 1979), XIII 13-120; B. Alan Wallace, Mind in the Balance: Meditation in Science, Buddhism, and Christianity (New York: Columbia University Press, 2009), 115 – 118.
8. Stephen Batchelor, Buddhism without Beliefs, 35-36.
9. Ibid. 16.
10. Ibid. 62.
11. Progress in this regard can be read by following the series of scientific papers on the “Shamatha Project” on the website of the Santa Barbara Institute for Consciousness Studies: http://sbinstitute.com/. Other studies have been cited elsewhere in this volume.
12. Stephen Batchelor, Buddhism without Beliefs, 39.
13. Ibid. 97.
14. Stephen Batchelor, Confession of a Buddhist Atheist (New York: Spiegel & Grau, 2010).
15. Personal correspondence, July 6, 2010.
16. Sam Harris, Letter to a Christian Nation (New York: Alfred A. Knopf, 2006), 51.
17. Cf. B. Alan Wallace, “Religion and Reason: A Review of Sam Harris’s Letter to a Christian Nation.” In Shambhala Sun, October/November 2006: 99-104.
18. Sam Harris, “Killing the Buddha” In Shambhala Sun, March 2006, 73-75.
19. Hugh Heclo, “Religion and Public Policy,” Journal of Policy History, Vol. 13, No.1, 2001, 14.
20. Buddhaghosa, The Path of Purification, trans. Bhikkhu Ñāṇamoli (Kandy: Buddhist Publication Society, 1979) IX: B. Alan Wallace, The Four Immeasurables: Cultivating a Boundless Heart (Ithaca, NY: Snow Lion Publications, 2004).
Original em inglês: https://fpmt.org/mandala/archives/mandala-issues-for-2010/october/distorted-visions-of-buddhism-agnostic-and-atheist/
Tradução de Tiago da Silva Ferreira
Um comentário em “Visões distorcidas do budismo: agnóstica e ateísta”