Sento-me com minha xícara de chá esta manhã e abro o jornal. Normalmente não leio jornais, mas uma das manchetes chamou minha atenção. Diz: “Você está pronto para o homem sensível?” com uma figura de um homem que joga fora suas revistas pornô e de carros enquanto segura uma revista sobre meditação. Uma lágrima escorre de seus olhos. É um artigo sobre a mudança de papéis de gênero em nossa sociedade ocidental. Na mesma matéria, há também um artigo sobre a crescente popularidade de Frida Kahlo. O artigo atribui tal popularidade à sua bissexualidade e superação dos papéis de gênero.
Há alguns meses, a Bélgica aprovou uma lei para permitir que as pessoas mudassem seu gênero legalmente sem qualquer problema: basta ir ao município, fazer a mudança e pagar uma pequena taxa administrativa. Um juiz da Holanda decidiu recentemente que um terceiro gênero deveria ser reconhecido pela lei. As coisas estão mudando em nosso mundo; os papéis sociais tradicionais de gênero que aprendemos desde que nascemos estão mudando.
Então, o que isso significa para nós budistas? Como encaramos o gênero e trabalhamos dentro de nós mesmos e como devemos lidar com esse ambiente em mudança na Sangha? Vamos primeiro dar uma olhada no que realmente é esse “gênero”. Quando nascemos, somos homens ou mulheres. Somos mesmo? Esta é a suposição sobre a qual repousa o nosso mundo binário de gênero. Mas vamos examinar mais de perto essas suposições.
Antes de tudo, quero esclarecer a terminologia: há uma diferença entre sexo biológico, papéis sociais de gênero, identidade de gênero e orientação sexual. Muitas vezes, esses termos são usados livremente e como sinônimos, mas isso é um erro. Embora esses termos tenham algo a ver um com o outro, eles ainda são independentes um do outro, pois qualquer indivíduo pode ter uma combinação única de cada um.
Terminologia
Sexo Biológico
O Sexo refere-se às diferenças anatômicas e outras diferenças biológicas entre mulheres e homens que são determinadas no útero. A maioria das pessoas nasce com órgãos masculinos ou femininos, mas certamente nem todos. Também há pessoas que são intersexuais. Em nosso mundo, eles são frequentemente operados assim que nascem, a fim de se encaixarem no mundo binário de gênero aqui de fora.
Existe ainda uma mudança espontânea de sexo. Isso é raro, mas pode acontecer na puberdade, principalmente de mulher para homem. Cientificamente, esse processo ainda não está bem entendido. (Salt, 2007)
Papéis sociais de gênero
O gênero é um conceito social que denota as diferenças sociais e culturais que uma sociedade atribui às pessoas com base em seu sexo biológico. Cada sociedade impõe às pessoas expectativas de comportamento e atitudes com base em seu sexo biológico. A isso chamamos papéis de gênero. O gênero é, portanto, uma construção social. O modo como pensamos e nos comportamos como homens ou mulheres não é determinado pelo nosso sexo biológico, mas é o resultado de como a sociedade nos condiciona com base nesse sexo biológico. (Lindsey, 2011)
Biologia versus condicionamento social
Há muitos anos se debate se as diferenças de gênero decorrem da biologia (Workman & Reader, 2009), do condicionamento social ou de uma combinação dos dois. É claro que existem diferenças entre as capacidades de nossos respectivos corpos, mas no nosso mundo essas diferenças também estão sujeitas a alterações. Não vivemos mais em uma sociedade onde a sobrevivência diária é de suma importância. Todo mundo ainda possui características e possibilidades únicas, mas elas não são mais determinadas apenas por nosso sexo biológico. Mesmo que as diferenças biológicas tenham influenciado os papéis de gênero nos tempos pré-históricos, essas diferenças são amplamente irrelevantes no mundo de hoje. (Hurley, 2007; Buller, 2006; Begley, 2009).
Algumas das evidências mais convincentes contra uma forte determinação biológica dos papéis de gênero vêm de antropólogos, cujo trabalho em sociedades pré-industriais demonstra alguma variação impressionante de gênero de uma cultura para outra. Essa variação ressalta o impacto da cultura na maneira como mulheres e homens pensam e se comportam (Mead, 1935; Morgan, 1989; Murdock, 1937).
Identidade de gênero
Identidade de gênero é como nos sentimos sobre nós mesmos. É uma construção mental que, na maioria dos casos, está alinhada com o papel atribuído ao gênero e ao sexo biológico, mas não em todo mundo.
Tentativas de redesignar a identidade de gênero podem resultar em disforia de gênero; a condição de sentir que a identidade emocional e psicológica como homem ou mulher é diferente do sexo biológico. Essas pessoas literalmente sentem-se “no corpo errado” (ou sendo forçadas a desempenhar o papel de gênero errado) e se sentem mais confortáveis se puderem assumir o papel de gênero do sexo oposto ou nenhum papel de gênero específico.
Junto aos termos usuais de “homem” e “mulher”, há muitos termos para descrever várias formas de identidade de gênero. Se você quiser saber mais, aqui está um pequeno vídeo que oferece uma ótima introdução:
Orientação Sexual
A orientação sexual refere-se à preferência de uma pessoa por relacionamentos sexuais com indivíduos do outro sexo (heterossexualidade), do mesmo sexo (homossexualidade) ou ambos os sexos (bissexualidade).
Vidas Passadas
As causas pelas quais algumas pessoas se sentem diferentes da norma social, seja na identidade de gênero, na orientação sexual ou em ambas, têm sido muito debatidas, mas parece ser uma mistura altamente complexa de fatores biológicos e socioculturais. Uma coisa que chama minha atenção é que nenhuma das pesquisas se concentrou em vidas passadas. Todos nós já fomos homens e mulheres em nossas vidas anteriores e já representamos muitos papéis sociais diferentes, incluindo papéis de gênero. Os fatores mentais que trouxemos do passado para essa vida não devem ser esquecidos, mas é difícil determinar até que ponto isso desempenha um papel. Sabe-se, através do trabalho de Ian Stevenson, que crianças em tenra idade têm maior probabilidade de se lembrar de suas vidas passadas e essa é a idade em que a identidade de gênero é estabelecida.
Existe uma grande variedade de combinações de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual que as pessoas podem ter. Muitos transgêneros e pessoas queer tentaram viver uma vida de acordo com as normas sociais com o gênero baseado em suas características físicas antes de “saírem do armário”. Muitos estavam casados e com filhos antes de decidirem ou pela transição ou por revelarem-se queers. Alguns nunca revelam-se e permanecem no papel de gênero a que foram designados/as. A ideia do gênero binário é simplesmente simplista demais.
Não acho que hoje em dia existam mais pessoas que se sintam desconfortáveis em seu papel de gênero do que antes, mas que a conscientização, a compreensão e a aceitação estão aumentando em nossa sociedade moderna. Muitas pessoas começam a questionar o valor desses papéis de gênero em um mundo em constante mudança, onde a sobrevivência imediata é menos importante, mas novos desafios precisam ser enfrentados. No final, somos todos apenas seres humanos.
Gênero no Budismo
A religião desempenha um papel importante na socialização dos indivíduos em relação aos papéis de gênero que lhes são atribuídos. O budismo certamente não é exceção, mas temos que fazer a diferença aqui entre os ensinamentos do Buda e a cultura budista, que se desenvolveu com base em diferenças geográficas e interpretativas a partir da época do Buda.
Para entender o ponto de vista budista, precisamos voltar à história. Como Ayya Sujato apontou em seu artigo sobre os órgãos genitais do Buda, o próprio Buda parece se inclinar ao não-binário: ele foi além da noção de gênero. Mas como eram as coisas na época do Buda? Era uma sociedade muito diferente da nossa e as únicas coisas que sabemos sobre ela chegaram até nós através das histórias de fundo dos Suttas e da Vinaya. Mas o que isso nos diz é que, nas relações sociais, essa sociedade não era muito diferente da Índia hoje. De qualquer forma, era provavelmente uma sociedade heterossexual e patriarcal em que o casamento forçado era a norma.
Foi nessa sociedade que o Buda teve que ensinar. Mesmo que ele próprio se sentisse diferente, ele não desafiaria diretamente as estruturas existentes na sociedade, mas ensinaria as pessoas a contemplar e olhar dentro de si mesmas. Sua maneira de ensinar era muito sutil, nunca repreendendo, mas sempre guiando as pessoas a encontrar respostas lá dentro. E o que ele ensinou era ser compassivo com todos os seres, independentemente da casta e sexo.
Em seus Ensinamentos, ele deixa muito claro que essas distinções entre humanos são irrelevantes:
“Nem no pescoço, nem nos ombros,
não na barriga ou nas costas,
nem nas nádegas nem no peito,
não na virilha ou partes sexuais.Nem nas mãos nem nos pés,
não nos dedos ou nas unhas,
nem nos joelhos nem nas coxas,
não na sua “cor”, não no som,
aqui não há marca distintiva
como em muitos outros tipos de nascimento.Nos corpos humanos como eles são,
tais diferenças não podem ser encontradas:
as únicas diferenças humanas
são apenas aqueles nos nomes. ”
Os ensinamentos
Existem várias maneiras de ver os ensinamentos. Uma maneira que acho útil são os ensinamentos dos cinco Khandhas: forma, sentimento, percepção, escolhas e consciência. Ao ensinar sobre os cinco Khandhas, o Buda ensina a contemplá-los como Anicca (impermanência), Dukkha (sofrimento) e Anatta (não-eu). Ele não diz que não existe um eu, mas que se você se identifica com um eu, você se identifica na verdade com esses cinco Khandhas; se você os vê de acordo com a realidade, eles não funcionam como um “eu”, algo em que você possa se apegar.
Sua abordagem é incentivar a investigação. Como você sabe das coisas? Analise cada aspecto da experiência e veja se é permanente ou impermanente. O termo “Dukkha” é um pouco mais sutil e às vezes confuso porque “dukkha” é usado aqui como uma característica dos cinco Khandhas e não é usado no mesmo sentido que o sentimento de “dukkha”, que faz parte do segundo Khandha. O que se entende aqui é algo como ver a imperfeição das coisas, ver que não podem proporcionar satisfação duradoura. Anatta é ver que essas experiências não podem ser controladas e, portanto, não são um eu.
Uma das coisas mais importantes sobre os cinco Khandhas não é a definição particular de cada um, mas a inter-relação entre os quatro primeiros (forma, sentimento, percepção, escolhas) com o quinto (consciência). A interação, a capacidade de resposta e a ressonância entre a consciência subjetiva interior e o corpo senciente, entre o senso interno de consciência e as características externas. Nós simplesmente não enxergamos objetos como annica, dukkha, Anatta, mas a própria natureza e estrutura da interação em si é interdependente e gira constantemente, mudando continuamente. O insight profundo não é saber o que são os objetos externos, mas sim como a mente envolve-se com tais objetos.
Em relação ao gênero, podemos ver que nossa identidade de gênero é uma percepção. Quer nos identifiquemos como homem, mulher ou outra coisa, todos nutrimos tal percepção. Desfrutamos também de uma ideia de como as outras pessoas nos percebem e é aí que nosso papel de gênero designado entra em cena. Este papel de gênero é um fenômeno socialmente condicionado, mas também possui uma parte interna, a saber, como percebemos isso em relação a nós mesmos; a interação entre o que está dentro e o que está fora. Não temos controle sobre como essas coisas são e não podemos ter uma identidade de gênero diferente. É Anatta. É como é e não podemos mudar. Nossa identidade de gênero não é uma escolha.
Mas, quando contemplamos há uma mudança de Sañña (percepção) para Pañña (sabedoria). Observando as coisas, lentamente nossas impurezas desaparecem e começamos a ver as coisas sob uma luz diferente. As qualidades interiores da mente mudam enquanto a sabedoria cresce. Dessa forma, podemos deixar de pensar em como “devemos ser” de acordo com algum padrão social percebido fora de nós e aprender a aceitar a nós mesmos e a nosso gênero, como somos, mantendo em mente que é Anatta. Dessa forma, mudamos nosso relacionamento com o mundo exterior e mudamos nossa percepção de nós mesmos e dos outros.
A Vinaya
Como é mostrado nesse pequeno vídeo, o argumento contrário à ordenação de transgêneros que é utilizado atualmente é o mesmo usado anteriormente contra a ordenação de Bhikkhunis (monjas): uma pessoa pode meditar e desenvolver-se sem ser ordenado(a), devendo aceitar as coisas como são e contentar-se com elas. Esse é um argumento que é frequentemente usado pelos budistas, citando os ensinamentos sobre ser contente, equânime e desapegado(a). Mas essa é uma compreensão errada dos Ensinamentos. O desejo de ordenar-se é uma aspiração saudável de acordo com o Dhamma e o Buda o teria aplaudido. O próprio Buda sempre foi compassivo com todos os seres e quando indivíduos foram recusados para ordenação, nunca foi por causa de sua identidade de gênero ou orientação sexual.
Temos que ver como as pessoas com gênero distinto foram descritas na Vinaya. Existem várias palavras que podem denotar isso, ou que geralmente são traduzidas como tais, todas as quais aparecem apenas nos Khandakas do Vinaya Pitaka e, mais precisamente, apenas nos Bhikkhunikhandaka (ou como um termo pejorativo de acordo com Bhikkhu Saṅghādisesa). Bhikkhu Sujato (2007) argumenta que os Bhikkhunikkhandhaka, assim como outras partes do Vinaya, são uma adição posterior, possivelmente datada do Segundo Conselho.
Há vários tipos de pessoas mencionadas: Vepurisikā, Sambhinna, Ubhatovyañjanaka e Paṇḍaka.
Todos esses termos são mencionados em conjunto com a ordenação: pessoas com tais características não podem ordenar-se, pelo menos, não como Bhikkhuni. Nos primeiros suttas budistas, não encontramos menção aos três primeiros termos, apenas a palavra Paṇḍaka é encontrada em algumas passagens do Anguttara Nikaya que não têm paralelo em outros textos antigos. Não está claro o que esses termos realmente denotam, embora pessoas mais conservadoras na Sangha se refiram a esses termos como significando alguém que não cumpre as normas de gênero estabelecidas. No entanto, acredito que é errado aceitar a leitura mais conservadora dos textos com base em tão pouco conhecimento do significado real desses termos.
O termo Paṇḍaka foi discutido em mais detalhes neste tópico e também no ensaio de @Bernat Font. Tudo indica que Paṇḍaka não é uma indicação de gênero ou orientação sexual, mas mais um termo que denota uma pessoa que exibe um forte comportamento lascivo que, é claro, seria inapropriado na Sangha.
Independentemente de como a Vinaya é interpretada, a doutrina de Anatta nega que exista uma identidade ou entidade duradoura no centro de qualquer ser, de modo que isso faz da diferença de gênero, em um nível mais profundo, um fator superficial, assim como raça, etnia, aparência ou status social. Portanto, negar a ordenação de alguém com base nisso é contra o Dhamma.
Os ensinamentos do Buda são tão aplicáveis no mundo de hoje como eram há 2500 anos, mas temos que ter em mente que as condições em que precisamos trabalhar com esses ensinamentos são muito diferentes. Não temos o Buda para nos dizer o que fazer, mas se tentarmos seguir os passos do Buda e formos bondosos e compassivos com todos os seres, não estaremos nos desviando.

Bhikkhu ou Bhikkhunī?
É claro que o exposto acima levanta a questão: se a ordenação de transgêneros for permitida… como deveriam ser ordenados?
Sem dúvida, este será o tema de muita discussão nos próximos anos, porque nem todas as pessoas trans foram submetidas à cirurgia (portanto, ainda podem ter o corpo do sexo oposto, pelo menos em parte). É bem possível que alguém com genitais masculinos se identifique como mulher e vice-versa. Além disso, existem muitas pessoas que não se identificam fortemente com nenhum dos sexos: elas são não-binárias.
Anderson (2016a) destaca que monges e monjas renunciam aos marcadores habituais de diferenciação de sexo e gênero quando vestem seus mantos e raspam a cabeça. Além disso, vivem uma vida celibatária, de modo que esses órgãos sexuais não são usados para os fins para os quais a natureza os projetou. Portanto, pareceria ridículo para um transgênero, que não passou por uma cirurgia completa, ter que passar por isso em prol de uma parte do corpo que não desempenha nenhum papel na prática monástica budista.
O argumento gira em torno da explicação de uma passagem da Vinaya no Pārājika 1:
Certa vez as características de mulher apareceram no corpo de um bhikkhu. Eles informaram o Abençoado do ocorrido. Ele disse: “Bhikkhus, permito que os anos como discípulo, anos de vida santa, anos como um bhikkhu, sejam transferidos para as bhikkhunis. As ofensas ao código de disciplina dos bhikkhus que são compartilhadas com o código de disciplina das bhikkhunis devem ser tratados na presença de bhikkhunis. As transgressões que não tem paralelo no código de disciplina das bhikkhunis passam a não ser mais aplicáveis.”
Certa vez as características de homem apareceram no corpo de uma bhikkhuni. Eles informaram o Abençoado do ocorrido. Ele disse: “Bhikkhus, permito que os anos como discípula, anos de vida santa, anos como uma bhikkhuni, sejam transferidos para os bhikkhus. As ofensas ao código de disciplina das bhikkhunis que são compartilhadas com o código de disciplina dos bhikkhus devem ser tratados na presença de bhikkhus. As transgressões que não tem paralelo no código de disciplina dos bhikkhus passam a não ser mais aplicáveis.”
O surgimento dessa passagem no Pārājika 1 é um pouco estranha. Esse capítulo trata das relações sexuais e, obviamente, uma mudança de características [de gênero] não tem muito a ver com isso. É possível que essa passagem tenha sido adicionada posteriormente.
Carol Anderson (2016) salienta que no Abhidhamma, o renascimento masculino é visto como resultado do bom kamma, enquanto o renascimento feminino é resultado do mau kamma (adultério) e que isso pode ter alguma influência no aparecimento dessa passagem no Pārājika 1 .
Não está claro quais são exatamente as “características de um(a) mulher/homem”. A palavra no original é liṅga, que significa sinal ou características. Pode se referir a características físicas, mas não necessariamente. As palavras para “características de um(a) mulher/homem” são itthiliṅgaṃ e purisaliṅgaṃ. Essas palavras aparecem no cânone apenas 5 vezes, em textos posteriores como o Abhidhamma e o Milindapañha. Também aparece nos primeiros suttas uma vez, no Digha Nikāya 27, que descreve a evolução. Neste último caso, parece que liṅga realmente se refere ao sexo biológico.
No primeiro comentário sobre o Vinaya-piṭaka, o Samantapāsādikā, a mudança de liṅga é descrita como aparecendo repentinamente no meio da noite; alguém vai para a cama como homem e acorda como mulher. Naturalmente, isso parece altamente improvável, mas pode ter suas raízes na noção de que o sono é um estado precário pelo qual se perde o controle, o que pode levar a situações vergonhosas (Heirman, 2012). O comentário também atribui essa mudança ao kamma bom ou ruim.
Scherer (2006) e outros tomam o termo liṅga como uma referência aos ‘órgãos sexuais secundários’ ou às características da diferença sexual, que também incluem diferenças de comportamento, para que o termo possa ser usado tanto para denotar sexo biológico quanto identidade de gênero tal qual definimos hoje. Eles baseiam essa conclusão no trabalho de Buddhaghosa, um posterior comentarista [dos textos budistas]. No entanto, a noção de gênero que temos hoje é sem dúvida diferente daquela da época do Buda. São necessárias mais pesquisas nesse campo e também os paralelos correspondentes em outras escolas para obter uma imagem melhor.
De qualquer forma, parece que há muita incerteza sobre a que liṅga realmente se refere. Existem diferentes tentativas de explicar o termo na literatura comentada posterior, mas há visões muito diferentes umas das outras. Tudo isso tem impacto no processo de ordenação, onde é perguntado se alguém é purisa (homem) ou iti (mulher). O que parece resultar desta passagem do Pārājika 1 é que, para ser homem ou mulher com a finalidade de ordenação, deve-se ter a liṅga de um homem ou mulher.
Sinto que a maneira mais segura de abordar esta questão é novamente olhar para os Ensinamentos e escolher o caminho mais compassivo. A passagem do Pārājika 1 dá uma indicação do que o Buda faria: a pessoa em transição [de gênero] deveria praticar de acordo com a Vinaya que lhe é mais apropriada, a fim de obter as melhores oportunidades possíveis para erradicar as contaminações e praticar os ensinamentos.
Sinto, portanto, que, à luz dos Ensinamentos, a ordenação deve ser baseada na identidade de gênero e não no sexo biológico. A Vinaya do Buda é uma diretriz para a nossa prática e tem como objetivo nos ajudar a superar nossas contaminações. Uma mulher trans, devido à sua identidade de gênero como mulher, também se beneficiará mais com o treinamento para Bhikkhunis e vice-versa. Cabe, portanto, a cada indivíduo ver onde receberia o melhor treinamento adequado para si, em consulta com os monásticos do mosteiro onde desejam treinar.
Como disse Ajahn Brahm:
Como budistas que adotam o ideal de bondade e respeito incondicional, julgando as pessoas por seu comportamento, e não por seu nascimento, devemos estar bem posicionados para mostrar liderança no desenvolvimento da igualdade de gênero no mundo moderno e na conseqüente redução do sofrimento para metade da população mundial. Além disso, se o budismo permanecer relevante e crescer, devemos abordar essas questões de frente. Mas como podemos falar sobre igualdade de gênero quando algumas de nossas próprias organizações budistas Theravada discriminam por causa de gênero?
Neste artigo, não pretendo esgotar o assunto, mas procuro estabelecer uma visão geral da problemática e abrir um canal para discussão e mais pesquisas neste campo. Hoje temos uma pesquisa bastante abrangente com relação às Bhikkhunis e à possibilidade da ordenação de Bhikkhunis, é hora de começarmos a olhar para outras minorias que nem sempre são aceitas na Sangha.
Referências:
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https://www.researchgate.net/publication/313629904_Changing_Sex_in_Pali_Buddhist_Monastic_Literature
Anderson, C. (2016a). ‘Defining Women’s Bodies in Indian Buddhist Literature’ In: Barbara A. Holdrege and Karen Pechilis (eds) Re-figuring the Body: Embodiment in South Asian Religions. Albany, NY: State University of New York Press
Begley, S. (2009, June 29). Don’t blame the caveman. Newsweek 52–62.
Buller, D. J. (2006). Adapting minds: Evolutionary psychology and the persistent quest for human nature. Cambridge, MA: MIT Press.
Heirman, Ann 2012. ‘Sleep Well! Sleeping Practices in Buddhist Disciplinary Rules’ Acta Orientalia Academiae Scientiarum Hungaricae 65(4), pp. 427–444.
Hurley, S. (2007). Sex and the social construction of gender: Can feminism and evolutionary psychology be reconciled? In J. Browne (Ed.), The future of gender (pp. 98–115). New York, NY: Cambridge University Press.
Lindsey, L. L. (2011). Gender roles: A sociological perspective (5th ed.). Upper Saddle River, NJ: Prentice Hall.
Mead, M. (1935). Sex and temperament in three primitive societies. New York, NY: William Morrow.
Morgan, S. (Ed.). (1989). Gender and anthropology: Critical reviews for research and teaching. Washington, DC: American Anthropological Association.
Murdock, G. (1937). Comparative data on the division of labor by sex. Social Forces, 15, 551–553.
Salt D, Brain Z (June 2007). “Intersex: Case studies”. Cosmos (15). Archived from the original on 2009-02-14.
Scherer, Burkhard (2006). ‘Gender Transformed and Meta-gendered Enlightenment: Reading Buddhist Narratives as Paradigms of Inclusiveness’ Revista de Estudos da Religião – REVER 6(3), pp. 65–76.
Sirimanne, Chand R. (2016). Buddhism and Women-The Dhamma Has No Gender. Journal of International Women’s Studies.
http://vc.bridgew.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1923&context=jiws
Sujato Bhikkhu, (2007). Bhikkhuni Vinaya Studies. Santipada.
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Workman, L., & Reader, W. (2009). Evolutionary psychology (2nd ed.). New York, NY: Cambridge University Press.