De Stephen Batchelor
Querido Alan,
Li o seu artigo “Visões Distorcidas do Budismo: Agnóstica e Ateísta”, publicado na edição anterior da Mandala. Embora eu reconheça que parte do que eu digo entra em conflito com a ortodoxia budista, não acredito que estou distorcendo a mensagem de Siddhattha Gotama. Eu estou oferecendo uma interpretação do Darma na esperança de que o ensinamento do Buda continue a falar às preocupações centrais das pessoas no mundo de hoje e forneça uma filosofia e uma prática eficazes para abordá-las. Eu entendo que o que eu digo pode parecer enigmático, questionável e até mesmo herético para seguidores de escolas budistas tradicionais. E eu lamento por qualquer ofensa que eu possa ter causado inadvertidamente a você e aos outros devido aos meus escritos.
Aqui está um e-mail de um estranho que recebi através do meu site há alguns dias atrás:
“Querido Stephen, obrigado pelo conhecimento budista que você transmite a todos nós envolvidos com a complexidade do budismo num mundo ocidental moderno. Pessoalmente, você me ajudou a recuperar a devoção e a crença na abordagem budista e ética da vida. Desde que viajei para a Ásia há 12 anos, fiquei muito fascinado pelo budismo, mas a questão do renascimento sempre me fez duvidar se eu poderia me chamar de budista ou não – e se essa era a abordagem certa para mim se eu tivesse que me forçar a acreditar em algo que eu realmente questionava. Foi um alívio ler sobre o agnosticismo e o budismo como sendo capazes de trabalhar juntos. Você me ajudou a encontrar o caminho de volta para algo que me é querido. Por isso retomei minha prática de novo, o que realmente traz o foco de volta depois de tantos anos no escuro”.
Eu me encontrei em um dilema semelhante depois de oito anos estudando com Geshe Rabten e outros professores da tradição Gelug. Embora eu não pudesse mais de boa fé aceitar certas crenças tradicionais, eu ainda estava convencido de que o Darma oferecia a estrutura mais abrangente dentro da qual uma vida humana poderia florescer. Foi então que, como vocês sabem, eu fui à Coreia estudar e treinar no Zen.
Sempre me intrigou por que você e meus outros amigos budistas tibetanos nunca mostraram o menor interesse no que fiz lá. O Zen não se encaixa confortavelmente com as formas indo-tibetanas do Darma. Ele soa estranhamente diferente, até perturbador. Como sabemos, o Zen foi banido no Tibete depois do debate de Samye no século VIII. No entanto, devido à sua antiguidade e popularidade, hoje ele não pode simplesmente ser ignorado. Dessa forma, você se sentiu obrigado em seu texto a apelar à autoridade de Dogen para tornar seu argumento a favor da crença no renascimento mais impermeável, incluindo o Zen. Não discordo que os zen-budistas, em termos gerais, acreditam no renascimento. Mas, em termos de prática Zen, tal crença é irrelevante. O fato de eu a ter questionado não fez diferença alguma na busca de meu estudo e treinamento na comunidade monástica em Songgwang Sa.
Um dos principais significados do Zen na vinda do Darma para o Ocidente é que ele fornece um excelente estudo de caso histórico do encontro entre o budismo indiano e uma civilização com uma cultura própria altamente evoluída e distinta, a China. Em contraste, quando o budismo entrou no Sudeste e na Ásia Central, juntamente com o Darma, também introduziu uma alta cultura – a da Índia. Ao ver como o budismo foi transformado pelo seu encontro com a China, podemos ter uma pista de como ele também pode mudar à medida que se esforça para encontrar uma voz no mundo moderno.
Fui treinado na escola de Zen de Lin-chi (Rinzai), cujo fundador foi o monge do século 9 Lin-chi I-hsuan, talvez mais conhecido por sua admoestação: “Se você encontrar o Buda, mate-o!”. Leia o Registro de Lin-chi, suspeito que você possa achar os escritos de Batchelor bastante tímidos e ortodoxos comparativamente. Considere, então, este diálogo entre Bodhidharma, que trouxe o Zen para a China da Índia no século VI, e o devoto Imperador Wu de Liang:
Wu: “Qual é o significado das Sagradas Verdades?”
Bodhidharma: “Vazio profano”
Wu: “Então, quem está de pé diante de mim?”
Bodhidharma: “Eu não sei”
Isso soa como um duplo golpe ateu-agnóstico?
Eu achei tudo isso terrivelmente revigorante e libertador. Os mestres zen da dinastia Tang (618-907) – considerados como a idade de ouro do budismo na China – exibiram uma maravilhosa, irreverente vitalidade que brotou de seu gênio nativo quando ela se envolveu com o Darma do Buda. Eles deram origem à cultura zen que se espalhou por todo o leste da Ásia, produzindo obras sublimes de filosofia, poesia, literatura, pintura e arquitetura. Ou você consideraria todo esse movimento como uma distorção do budismo, na qual os chineses projetaram seus próprios preconceitos sobre o Darma e recriaram o Buda à sua própria imagem como um sábio taoísta?
No entanto, não me considero um “professor zen” como você me descreve; Não tenho interesse maior em promover essa forma de budismo asiático do que outra qualquer. No entanto, minha experiência do Zen foi fortalecedora – ela confirmou o valor da imaginação e da criatividade na prática do Darma, me deu a coragem de falar em minha própria voz. Eu seria o primeiro a reconhecer que essa pode ser uma tentativa arriscada e perigosa. Também estou ciente de que serei acusado de arrogância ou coisa pior. Às vezes sou acometido por dúvidas. No entanto, para o bem ou para o mal, é assim que meu caminho se desenrolou e sinto responsabilidade por aqueles que parecem se beneficiar daquilo que eu digo.
Desde que voltei da Coreia para a Europa há 25 anos, meus estudos se concentraram nos discursos do Cânone Páli, que você reconhece como “o registro mais incontestável do que o Buda ensinou”. Embora seria tolice afirmar que nesses discursos o Buda nunca falou de renascimento, nem estabeleceu algumas de suas principais doutrinas à luz dessa crença, eu ainda argumentaria que ele fez isso porque essa era a cosmovisão hegemônica no seu tempo. Se você ler aqueles Upanishads que os eruditos consideram pré-existirem ao Buda, você encontrará muitas passagens que falam de uma continuidade da vida após a morte e da necessidade de a alma se libertar desse ciclo, alcançando a união com a realidade absoluta de Deus. A tradição jainista do contemporâneo do Buda, Mahavira, que remonta à figura de Parsva cerca de dois séculos antes, é estipulada de maneira semelhante, mas sem Deus. O Buda vai um passo além e tira a alma da equação também, embora, curiosamente, não forneça nenhuma explicação sobre o que é ou deixa de renascer. De acordo com The Shape of the Ancient World: Comparative Studies in Greek and Indian Philosophies de Thomas McEvilley, a visão do renascimento foi difundida por toda a antiguidade, da Índia à Grécia, e aceita por Pitágoras, que precedeu o Buda, e Sócrates, que foi seu contemporâneo.
Agora, se como você diz, o Buda ensinou uma visão “completamente diferente” de renascimento, esperava-se encontrar pelo menos um sutta no Cânone Páli, onde o encontrássemos sendo criticado por seus pontos de vista sobre este assunto por brahmins e outros ascetas, e defendendo sua posição heterodoxa. Mas, tanto quanto sei, não encontramos. Ao contrário, ao ler os discursos em Páli, tem-se a impressão dominante de que o orador e o público concordam amplamente sobre o que significa renascimento. O Buda não precisa se explicar. Eu reconheço que o Buda ou seus seguidores refinaram e desenvolveram a doutrina do renascimento como parte de seu esquema distintivo de salvação, mas esta é uma contribuição budista para a evolução de um conceito estabelecido, ao invés de um ponto de partida para algo diferente.
Fiquei feliz em ver que você citou o Kalama Sutta como uma fonte de autoridade em seu ensaio. Este é o único texto que conheço no Cânone em Páli, onde o Buda afirma explicitamente que a prática do Darma é válida e vale a pena “mesmo se não houver outra vida e não houver frutos de ações boas ou ruins”. Este é o mais próximo que ele chega a uma posição agnóstica sobre o assunto. No mínimo, sugere que ele não considerava a crença no renascimento necessária para todos aqueles que seguiam seus ensinamentos. Uma vez que acredita-se que o povo Kalama tenha vivido fora da área de influência cultural bramânica, o texto nos oferece um vislumbre de como o Buda, se ainda estivesse vivo, poderia abordar uma audiência no Ocidente de hoje.
Quanto ao despertar do Buda, não é de surpreender que você selecione um texto em Páli que o descreve em termos de lembranças de vidas passadas, enquanto eu prefiro citar as fontes que não o fazem. Para mim, o relato mais econômico e convincente é encontrado em A busca nobre (Majjhima, 26), onde o Buda conta sua história desde sua renúncia à sua decisão de ensinar. Quando ele descreve o despertar, não há menção alguma de lembranças de vidas passadas. Seu despertar consiste em ver a origem condicionada da perspectiva da cessação do desejo. Nada mais. Depois, como sabemos, ele vai para Sarnath, onde ele profere seu primeiro discurso Colocando a roda do Dhamma em movimento (um texto autoritativo, se é que houve um) na conclusão do qual ele declara que “Enquanto, bhikkhus, meu conhecimento e visão dessas Quatro Nobres Verdades como na verdade elas são, nas suas três fases e doze aspectos, não estava completamente purificado desse modo, não reivindiquei ter despertado para a insuperável perfeita iluminação”. Novamente, nenhuma menção de lembranças de vidas passadas.
A doutrina do renascimento não é inconsistente com esses relatos, e imagino que você responda dizendo que eles só podem ser realmente entendidos se forem inseridos nesse contexto. Eu diria, no entanto, que eles fornecem uma base adequada para o desenvolvimento de uma coerente interpretação secular do Darma, canonicamente sólida, que não tem necessidade alguma de crença em múltiplas vidas.
Mas há outra maneira de olhar para a questão do renascimento que sugere que o Buda consideraria esse argumento inteiro como algo irrelevante. Siddhattha Gotama nasceu em um período turbulento na história da Índia, onde a ordem social, política, filosófica e religiosa estabelecida estava sendo questionada. Nesse ambiente altamente disputativo, alguns professores rejeitaram abertamente a visão do renascimento. Embora tenhamos uma noção geral dessa fermentação intelectual em todo o Cânone Páli, o foco fica muito mais claro em duas parábolas, a da flecha envenenada (Majjhima 63) e dos cegos e do elefante (Udana 6.4). Seguindo os estudiosos da Bíblia do Seminário de Jesus e o recente What the Buddha Thought do acadêmico de Páli Richard Gombrich, as parábolas são consideradas como tendo uma alta probabilidade de serem verdadeiras palavras do fundador da tradição.
Ambas as parábolas dizem respeito às dez visões sobre as quais o Buda se recusou a comentar. Na parábola dos cegos, encontramos essas visões sendo debatidas por brâmanes e ascetas, que estão “apunhalando uns aos outros usando as palavras como adagas, dizendo, “’O Dhamma é assim, não assado. O Dhamma não é assado, é assim.’”. Dentre esses pontos de vista, não apenas encontramos “a mente e o corpo são a mesma coisa” e “a mente e o corpo são diferentes”, mas também “o Tathagata existe após a morte” e “o Tathagata não existe após a morte”. Brâmanes e ascetas não-budistas discutindo sobre estas questões, parece claro que “o Tathagata” aqui não se refere ao Buda (que, em qualquer caso, declarou repetidamente “este é o meu último nascimento”), mas apenas significa “um” ou “Eu”, que é como os comentários em Páli explicam. Em outras palavras, essas visões são simplesmente as “grandes questões” às quais as religiões tradicionalmente fornecem as respostas. O Buda, em contraste, as considera totalmente irrelevantes para realizar a tarefa urgente em mãos: remover a flecha envenenada de desejo que penetra o coração de alguém.
O Cânone Páli pode ser o registro mais incontestável do que o Buda ensinou, mas isso não significa que ele fale em uma única e inequívoca voz. Ouvem-se vozes múltiplas, algumas aparentemente contradizendo outras. Em parte, isso ocorre porque o Buda ensinou dialogicamente, abordando as necessidades de diferentes públicos, em vez de impor uma única doutrina universal para todos. E é precisamente essa diversidade, eu sinto, que permitiu que diferentes formas do Darma evoluíssem e florescessem.
Seu ataque ao ateísmo me intrigou. Fiquei surpreso por você ter achado tão controverso descrever o ensinamento do Buda como ateísta. Muitos leitores tem me dito: “Por que você chamou seu livro Confissões de um ateu budista? Eu pensava que todos os budistas fossem ateus?”. Depois você apresenta um discurso contra os males perpetuados pelos ateus durante o século XX, insinuando que ao declarar-me ateu estou involuntariamente preparando o terreno para outro pogrom anti-budista, o que é um absurdo. Ao contrário de Stalin e Mao, sou um ateu budista, lembre-se. Ao escolher este título, eu esperava mostrar como o budismo pode oferecer um modo de vida que incorpore nossas preocupações éticas, espirituais e religiosas mais profundas, sem ter que acreditar em nada que se assemelhe a Deus.
Fiquei feliz que você mencionou Dietrich Bonhoeffer, que é uma grande inspiração para mim. Era um homem corajoso e profundamente religioso, que, no entanto, imaginou um “cristianismo sem religião” que abraçou o mundo secular. Enquanto as Igrejas Alemãs comprometeram-se e vacilaram ao lidarem com Hitler, ele permaneceu sozinho na oposição bodhisattvica à tirania nazista. Eu simpatizo totalmente com a opinião dele de que as instituições religiosas podem muitas vezes impedir um envolvimento sincero com as questões mais urgentes do dia. Alguns de nós acreditam que, se o Darma for respirar novamente com a mesma criatividade e vitalidade que caracterizou todas as suas escolas em seu início, ele precisará de uma reforma.
Seu no Darma,
Stephen
Essa carta foi uma resposta para “Visões distorcidas do budismo: agnóstica e ateísta”, de B. Alan Wallace, publicada primeiramente como exclusivo online da Mandala.
Stephen Schettini oferece sua perspectiva sobre o intercâmbio entre Wallace e Batechelor em “An Old Story of Faith and Doubt: Reminiscences of Alan Wallace and Stephen Batchelor.”
Uma revisão do provocativo Confissões de um Ateu Budista de Stephen Batchelor está disponível através do October-December 2010 Editor’s Choice.
Leia uma entrevista com Stephen Batchelor na Mandala September-November 2002, “The Twins: Faith and Doubt.”
Original em inglês: https://fpmt.org/mandala/archives/mandala-issues-for-2011/january/an-open-letter-to-b-alan-wallace/
Traduzido por Tiago da Silva Ferreira