De Bhikkhu Cintita Dinsmore
Arte da Vida Leiga V: Rejeitando Elementos
Começamos a série “Arte da Vida Leiga” com a seção “Selecionando Elementos”, comparando nossos valores e obrigações, comparando seus preços e seus atrativos. Recorri, em primeiro lugar, aos valores do próprio leitor para seleção do que é mais importante, porém espero ter dado dois empurrãozinhos em particular. O primeiro, na direção de mais deliberação, mais exame cuidadoso dos atrativos e implicações ocultas. O segundo, na direção de simplificar, de ser ainda mais seletivo com os elementos. Só mais uma palavrinha a respeito da simplicidade: quando entulhamos nossas vidas de coisas, tendemos a entulhar nossa mente. E uma vida entulhada também deixa pouco espaço para a prática budista, do mesmo modo que uma oficina de carpintaria entulhada dificultaria a montagem de uma casa de passarinho. Por último, se pensarmos na prática budista como um processo de remoção de problemas, ou seja, eliminar as condições que trazem sofrimento. E se considerarmos que há problemas associados com cada elemento que adicionamos à nossa vida, então se livrar de todo o entulho em si nos adianta no caminho da prática budista. Retornaremos a esse tema da simplicidade no passo final na série “Arte da Vida Leiga”.
O segundo passo na arte da vida leiga é a rejeição de elementos, a eliminação de elementos cujo custo é alto demais, cuja retenção é contrária à prática budista, que não tem lugar numa vida budista. Aqui irei contar mais com a sabedoria do Buda, que nos deu alguns conselhos bem claros nesse âmbito. Porém, do mesmo modo que na seleção de elementos, a rejeição é um processo governado por suas escolhas e pode também exigir deliberação e exame antes que se tenha confiança nos conselhos do Buda. Além disso, as circunstâncias da vida podem ditar limitações na consideração destes conselhos.
Alguns dos conselhos mais claros vêm dos preceitos. Se há algum elemento em sua vida que envolve violação de um ou mais dos preceitos padrões, é um elemento problemático, especialmente se envolve violação habitual. O conjunto de preceitos mais padrão é o pancasila, ou cinco preceitos:
Não matar;
Não se apossar do que não for dado livremente;
Não se utilizar mal da sexualidade;
Não falar falsidades;
Não consumir intoxicantes que causam negligência.
Eu dou aos meus alunos os oito preceitos vitalícios que incluem três preceitos adicionais a respeito da fala, que penso serem particularmente problemáticos para americanos:
Não falar de modo malicioso;
Não falar de modo grosseiro;
Não falar de modo frívolo.
Os oito preceitos vitalícios também têm referência no modo de vida correto, do qual falarei abaixo.
Bom, os preceitos são regras gerais que se acercam da virtude. Há duas razões para os budistas seguirem os preceitos: em primeiro lugar, estes são muito efetivos em evitar causar mal a outros, indicando comportamentos que colocaram pessoas em situações problemáticas repetidamente desde eras remotas. Em segundo, e mais significativo para a ética budista, eles nos auxiliam na proteção e desenvolvimento da mente, aproximando-a carmicamente da perfeição de caráter em seus três aspectos (virtude, serenidade e sabedoria). Essas duas razões têm relação próxima, uma vez que evitar fazer o mal a outros é uma grande parte da virtude. Os preceitos deveriam ser fundamentais para qualquer prática budista desde seu princípio. Contudo, exigem por si mesmos um desenvolvimento da compreensão antes que possam ser adotados com determinação firme. Por exemplo, muitos ocidentais vêm o consumo de álcool em moderação como um hábito cultural agradável e relativamente inofensivo, mas conforme a prática espiritual se aprofunda, você começa a perceber o papel importante desse preceito na proteção da sua mente.
Agora, os preceitos podem, dentro do esperado, ser integrados na vida leiga sem problemas. Se um inseto te irritar, ao invés de matá-lo, você o coloca para fora. Se o cônjuge de seu vizinho for atraente, não tente seduzi-lo(a). Se alguém expressa uma opinião com a qual você discorda numa discussão on-line, não responda atravessado. Não faça isso, simples assim.
Porém, os preceitos representam dificuldades em particular para a vida leiga quando algum elemento de sua vida exige de você a constante violação de um deles. Isso é relevante sobretudo na sua escolha de modo de vida ou ocupação. Por exemplo, se você trabalhar num abatedouro, pode ser que tenha que matar vacas e frangos até… bem, até que as vacas voltem para casa. Tal situação provoca dois questionamentos importantes: se seu modo de vida exige de você que mate, (1) se é você que está de fato ferindo outros e (2) se é você que sofre as consequências cármicas, ou seja, se este modo de vida prejudica o bem-estar e desenvolvimento da sua mente. Afinal, matar é a decisão do seu chefe, e se não fosse você a seguir as ordens dele, não chamariam outra pessoa para fazer isso no seu lugar? Isso não te livra da responsabilidade?
A resposta budista é muito semelhante à sentença do Julgamento de Nuremberg: você não está livre da responsabilidade, ordens não são somente ordens e você é o herdeiro dos seus próprios atos. É um pouco difícil argumentar com base no prejuízo que se evita causar se este prejuízo será causado por outro colega de qualquer maneira, mas podemos observar claramente que você sofre as consequências cármicas. Você pode observar os efeitos a longo prazo com respeito ao seu próprio caráter, como você se torna insensível para com a morte, como seu sentimento de bem-estar diminui, até mesmo como seu sono é perturbado. Estudos feitos com executores, por exemplo, pessoas cuja tarefa análoga é aplicar a pena de morte em prisões dos EUA, revelam horríveis efeitos a longo prazo na saúde mental. A vida se torna um inferno depois da aposentadoria, mesmo no caso de serem defensores sinceros da pena de morte e sentirem em seus corações que estão prestando um serviço público necessário. No seguinte diálogo, o Buda faz uma observação semelhante e explícita:
Yodhavija: “Venerável senhor, eu ouvi, dito pelos guerreiros de antigamente da linhagem dos mestres: ‘Quando um guerreiro é alguém que se esforça e se empenha na batalha, se outros o matarem e acabarem com ele enquanto ele está se esforçando e se empenhando na batalha, então, com a dissolução do corpo, depois da morte, ele renasce na companhia dos devas que foram mortos em batalha.’ O que o Abençoado diz disso?”
(…)
O Buda: “Quando, chefe tribal, um guerreiro é alguém que se esforça e se empenha na batalha, a mente dele já está baixa, depravada, desencaminhada devido ao pensamento: ‘Que esses seres sejam mortos, massacrados, aniquilados, destruídos ou exterminados.’ Se outros então o matarem e acabarem com ele enquanto ele estiver se esforçando e se empenhando na batalha, então, com a dissolução do corpo, depois da morte, ele renasce no ‘inferno dos que foram mortos em batalha’.”
SN42.7 (http://www.acessoaoinsight.net/sutta/SNXLII.3.php)
Isso explica porque o modo de vida correto é importante o suficiente para ocupar um passo inteiro no nobre caminho óctuplo. A recomendação padrão do modo de vida correto é a seguinte:
“(…) um discípulo leigo não deve se dedicar a cinco tipos de negócios. Quais cinco? Negociar com armas, seres humanos, carne, embriagantes e venenos.”
AN5.177 (http://www.acessoaoinsight.net/sutta/ANV.177.php)
Perceba que aqui, três dos cinco modos de vida incorretos têm a ver com matar. Podemos dizer que tanto um guerreiro (soldado) como um executor “negociam com armas” [1]. Um funcionário de abatedouro ou um açougueiro negocia carnes. Um vendedor ou fabricante de pesticidas negocia venenos. Negócios com seres humanos se referem à escravidão ao à prostituição (pense em Robert de Niro em “A Missão” como boa referência de um perfil psicológico). Deve-se observar que, em geral, permitir ou encorajar que alguém quebre um preceito é considerado no budismo como uma versão minimizada da quebra de preceito em pessoa. Desse modo, fornecer intoxicantes ou venenos para outros indiretamente viola os preceitos contra o consumo de intoxicantes que geram negligência ou contra matar, respectivamente. Negociar armas pode incluir, de modo semelhante, comércio de armas, a forja de espadas e também, presumivelmente, a escrita de software para sistemas que guiam mísseis.
Essa lista, obviamente, não é completa. Em outros discursos, o Buda afirma:
“E o que, monges, é modo de vida incorreto? Maquinar, convencer, insinuar, depreciar e perseguir o ganho com o ganho.”
Isso caracterizaria bem muito do que envolve os negócios modernos: linguagem incorreta e tomar o que não foi dado livremente. O que é importante aqui é conhecer sua própria mente, se tornar íntimo com sua mente, entender seus humores e aprendizados e suas respostas a diversas influências. Como sua mente se sente no fim do dia? Por exemplo, num documentário recente sobre saúde na indústria de seguros nos EUA, foi entrevistada uma mulher cujo trabalho era avaliar pedidos para políticas privadas em termos de condições existentes, e também informar pessoas de que não estavam qualificadas, e que elas – a maioria dos que mais precisam de seguros – não estão aptas a obter seguro algum que seja. Ela parecia visivelmente perturbada, à beira das lágrimas, ao dar seu relato, e então adicionou: “Quando alguém entra, não procuro ser amigável. Não quero conhecer ninguém. Tento olhar apenas os pedidos.” Agora imagine como isso vai moldar o caráter dessa mulher ao longo de cinco, dez, quinze, vinte anos! Seu modo de vida não cai em nenhum dos descritos acima, ainda sim a situação está claramente cobrando um preço cármico bem caro. Isso é o que faz desse modo de vida incorreto.
Para o leitor, acho que o importante é olhar francamente para sua ocupação. Talvez você esteja além da censura, mas nesses tempos que vivemos modo de vida correto é provavelmente a exceção. Eu escrevia software, às vezes sobre contrato do Departamento de Defesa, incluindo um projeto para guiar mísseis. E isso acabou sendo um fator decisivo para eu estar hoje onde estou. Nos tempos modernos, com toda sua complexidade, você tem muitas mais razões para rejeitar certos elementos de sua vida leiga, tais como níveis extremos de estresse no local de trabalho, ou vegetar em frente à TV (às vezes, um implica o outro). Na semana que vem, quero transportar as preocupações do Buda para o século XXI.
Notas do tradutor:
1: No inglês, deal significa “negociar” ou “mexer” com algo. Daí a sugestão que soldados “negociam” com armas, que pode soar estranha, se encaixa no preceito budista, dado que esse sentido mais amplo é o que o Buda pretendeu, tendo em vista os exemplos do autor.
Traduzido por Luiz Fernando Rodrigues
Revisão: Tiago da Silva Ferreira
Links:
A Arte da Vida Leiga Parte 1
A Arte da Vida Leiga Parte 2
A Arte da Vida Leiga Parte 3
A Arte da Vida Leiga Parte 4