Abrace a morte

Meditar sobre nossa morte vale a pena? Para lidar com o sofrimento quando chega o momento da morte, esteja sempre preparado, escreve PHRA PAISAL VISALO. A técnica de meditar na morte se chama maraṇasati e foi instituída pelo próprio Buda no Anguttara Nikaya VI. 20. É recomendada sobretudo para quem já tem alguma experiência com meditação e não sofre de nenhum problema psicológico, como depressão por exemplo. Neste texto, o monge da Tradição da Floresta Paisal Visalo dá dicas sobre como meditar sobre a finitude da vida.

De Phra Paisal Visalo

A vida e a morte são na verdade um só e o mesmo fenômeno. Vamos morrer mais ou menos da mesma forma que vivemos. Se vivermos na ignorância, nosso momento final provavelmente será gasto em agonia, sem qualquer senso de paz e atenção plena. Mas se cultivarmos constantemente méritos e autoconsciência, seremos capazes de falecer pacificamente, estando no estado de atenção plena até o nosso último suspiro.

A vida do desperto é estar ciente da prevalência da morte o tempo todo. Há essa contínua prontidão de confrontar a morte. E mesmo quando a mente ainda não se sente pronta [para isso], ela pode ser treinada a cada dia, à medida que a pessoa cumpre seu dever da melhor forma, tendo aceitado que a incerteza nada mais é do que um fato da vida.

Existem vários métodos para cultivar essa contemplação da morte, ou maraṇasati. O simples pensamento de que todos nós vamos morrer mais cedo ou mais tarde, por isso devemos maximizar o tempo restante que temos é um exemplo. No entanto, para a maioria das pessoas, essas lembranças podem não ser suficientes. Elas podem ficar interessadas por um tempo, mas, eventualmente, suas vidas acabam voltando aos mesmos padrões de hábitos, entregando-se ao trabalho ou entretenimento, esquecendo o que é mais importante em suas vidas.

Uma maneira simples de contemplar a morte é imaginar o que poderia nos acontecer se a morte realmente ocorresse – agora. O que nós perderíamos? De quem sentiríamos falta? Poderia surgir um sentimento de dor para aqueles que pensam que ainda não estão prontos. Mas uma situação tão desagradável pode ajudar a estar melhor preparado, a praticar pelo tempo restante que ainda temos, a fim de lidar com o sofrimento quando o momento da perda realmente chegar.

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Aqui estão mais algumas ideias sobre como contemplar a morte e o definhamento:

Treine morrer na cama na hora de dormir

No final do dia, a hora de descansar a mente e o corpo é uma boa oportunidade para refletir sobre a inevitabilidade da morte. Pratique o processo de morrer como se estivesse enfrentando-o naquele exato momento.

A postura adequada é deitar e relaxar todas as partes do corpo, da cabeça aos dedos e, especialmente, o rosto. Inspire e expire livremente. Sinta a ponta do seu nariz e a suavidade da inspiração e expiração. Ponha de lado cada pensamento, seja sobre o passado ou futuro.

Quando a mente se acalmar, pense em como estamos nos aproximando da morte. Apenas não sabemos quando. Esta pode ser nossa última noite. O amanhã pode nunca chegar.

Pense em como cada respiração se dissolverá quando a morte chegar. O coração vai parar de bater. O corpo não poderá mais se mover e ficará frio e duro, não muito diferente de um tronco inútil.

Depois, pense em como todo material valioso que adquirimos e guardamos não será mais nosso. Eles pertencerão a outra pessoa. Não podemos fazer nada com eles. Aquilo que costumava ser querido para nós será deixado sozinho.

Além disso, não teremos mais outra chance de conversar com nossos filhos ou nosso(a) amado(a). Tudo o que costumávamos fazer com eles se tornará passado. Não poderemos mais visitar nossos pais ou fazer mais nada por eles. Não há tempo nem para dizer adeus, nem para fazer as pazes com aqueles com quem tínhamos rancor.

Todo o trabalho também terá que ser deixado para trás, mesmo aqueles que não foram concluídos. Não podemos mais fazer nenhuma revisão adicional. Por mais importante que seja esse trabalho, ele terá que ser abandonado. O mesmo vale para todo conhecimento e experiência que acumulamos – todos desaparecerão conosco.

Toda a fama, poder e apoiadores sairão do nosso alcance. Não importa o quão poderosos sejamos, não podemos levar nenhuma dessas coisas conosco. Não espere que as pessoas continuarão a nos elogiar depois de morrermos. Até nosso nome será finalmente esquecido.

Enquanto refletimos sobre isso, observamos nossos sentimentos. Nós nos preocupamos, lamentamos ou nos apegamos a algum deles? Estamos prontos para aceitar essas perdas? Se não, o que ainda nos deixa agitados? Tal contemplação nos ajudará a perceber que há algumas coisas que devemos fazer, mas ainda não fizemos (ou não fizemos o suficiente), bem como coisas com as quais ainda sentimos forte apego. Essa consciência nos levará a trabalhar as importantes (embora muitas vezes negligenciadas) questões, bem como a praticar a arte do desapego.

Contemplação na morte em várias ocasiões

De fato, pode-se contemplar a morte a qualquer momento do dia. Ao viajar de carro, barco ou avião, esteja sempre preparado. Se algo desagradável for acontecer nos próximos segundos, como enfrentar a situação? Qual seria nosso primeiro pensamento? Estaremos prontos para desistir de tudo pelo qual sentimos apego naquele momento?

Ao sair de casa, pense se essa pode ser nossa última viagem e talvez não possamos voltar a ver nossos pais, amados ou filhos novamente. Há algo que possamos nos arrepender por não ter terminado antes? Há algum conflito que possamos desejar ter reconciliado? Essa consciência nos incitará a tentar tratar melhor nossa família e a não deixar que certas questões sejam resolvidas no futuro – pois tal dia pode nunca chegar.

Ler jornais, especialmente reportagens sobre acidentes ou desastres, é outro momento oportuno para contemplar a incerteza da vida. Qualquer coisa pode acontecer sem aviso; as pessoas podem morrer em qualquer lugar e hora. Tente pensar em como a mesma coisa pode acontecer conosco também. Seremos capazes de encarar? Estamos preparados para morrer?

Assistir a um funeral também deveria ser o momento de nos lembrarmos da iminência da morte. Uma vez que o(a) falecido(a) também andava e perambulava como nós. No futuro, todos teremos que repousar como ele ou ela, não sendo capazes de levar nada conosco, exceto os efeitos de nossas boas ou más ações.

O melhor professor do dhamma é o corpo no caixão à nossa frente. Ele ou ela está tentando nos despertar da indulgência e negligência na vida. Quem acredita que ainda tem mais alguns anos pela frente, terá que reavaliar quando comparecer ao funeral de uma criança ou adolescente. Aqueles alienados pelo próprio poder devem perceber que, por mais “grandes” que tenham sido, todos acabarão sendo menores que o caixão que vai conter seu corpo.

Da mesma forma, ao visitar uma pessoa doente, devemos lembrar que nosso corpo um dia estará em condição semelhante. Mais uma vez, o paciente, especialmente o doente terminal, é como nosso professor do dhamma. Quaisquer que sejam suas reações _ ansiosas, traumáticas, desesperadas _ elas estão nos ensinando a nos preparar para que, quando chegar nossa vez,  possamos não sofrer tanto quanto elas. Da mesma forma, o doente que parece estar em paz e capaz de manter a compostura apesar da aparente dor física, também nos dá exemplos de como devemos nos preparar, especialmente enquanto ainda estamos com boa saúde.

Manter a mente calma em tempo de doença é o mesmo que mantê-la calma diante da morte. Por isso, pense no tempo de doença como um exercício para nos prepararmos para a morte. A doença funciona como a primeira lição antes de passarmos ao nível mais difícil – se não conseguimos lidar com a doença, como então enfrentar a morte?

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Lembretes sobre a morte

Poderíamos aplicar qualquer coisa que encontramos na vida diária para nos lembrar da morte. Depende das circunstâncias e da criatividade.

Alguns mestres tibetanos da meditação despejariam toda a água de seus copos e os colocavam ao lado de suas camas com a parte de baixo para cima. Eles fazem isso porque não tinham certeza se conseguiriam acordar e usar o copo novamente no dia seguinte. O ritual, portanto, servia como um lembrete para os mestres de que a morte poderia chegar a eles a qualquer instante.

Uma escritora tailandesa ouviu sobre essa história e a aplicou a si mesma: Toda noite, antes de ir para a cama, ela sempre se certifica de que cada prato foi lavado completamente. Se ela morresse durante o sono, não haveria louça suja como fardo para os outros, disse ela.

Um homem de 55 anos usava bolinhas de gude como seu “lembrete de morte”. Cada bolinha é equivalente a cerca de uma semana de vida. O homem calculou que se ele atingisse o tempo médio de vida, considerado como sendo de 75 anos, teria cerca de 1.000 semanas. Então, comprou 1.000 bolinhas e as colocou em uma caixa de plástico. Toda semana ele tirava uma bolinha da caixa. A quantidade decrescente de bolinhas de gude lembra-o que seus dias estão contados. Isso o lembra da morte que se aproxima, o que lhe permite escolher fazer a coisa mais importante, e não se deixar levar pela preocupação com o que não tinha importância.

Cada pessoa pode escolher diferentes “lembretes” – o nascer e pôr do sol, ou a flor que desabrocha, floresce e finalmente murcha, ou uma folha que brota de um galho de árvore e termina caindo no chão. Eles nos lembram da transitoriedade da vida. O Senhor Buda uma vez sugeriu que se deve ver a vida não muito diferente do topo espumoso das ondas, ou como uma gota de orvalho, um relâmpago – são todos transitórios, assim como nossa própria existência.

Outras atividades para se preparar para a morte

Poderíamos tentar o exercício de “deixar ir” nossos amados pertences e pessoas. Escolha sete objetos – eles poderiam ser uma pessoa, um animal de estimação, ou algo que consideramos caro para nós – e pergunte a si mesmo se fôssemos forçados a desistir de uma coisa, qual seria? Continue com cada um dos seis objetos restantes. Poderíamos nos imaginar em uma situação desagradável – como enfrentar um incêndio, um terremoto ou um acidente – que nos levaria a perder cada um dos nossos itens estimados. O que escolhemos manter? Do que desistir?

Tal exercício nos ensinará como desapegar. Nos ajudará a revisar nossos próprios conjuntos de apegos e descobrir o que consideramos ser o mais importante em nossas vidas. Alguns podem descobrir que amam ou se preocupam mais com os cachorros do que com seus irmãos e irmãs. Outros podem estar dispostos a desistir de tudo, menos de sua boneca favorita. Outros ainda escolheriam seu computador como o último item a desistir. Podemos descobrir algo sobre nós mesmos que não sabíamos antes – e então  tentar nos adaptar às novas circunstâncias. Tudo isso é crucial na preparação para a morte, pois, em última análise, teremos que perder tudo de um jeito ou de outro. Na verdade, mesmo quando ainda estamos vivos, estamos fadados a perder certas coisas ou pessoas, e muitas vezes sem a capacidade de escolher o que gostaríamos de manter e o que gostaríamos de perder.

Contemplação na morte e no definhamento

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Aqui vai um exemplo de pensamento que você pode recitar todas as noites, como uma maneira de se lembrar da transitoriedade da vida:

“Ao inspirar e expirar, tente manter sua mente num estado calmo e tranquilo.

Imagine uma foto de uma linda flor. Então visualize como a mesma flor começa a murchar, perdendo cada pétala, uma a uma. Como as cores antes deslumbrantes lentamente desaparecem até que toda a flor se torne sem vida.

Imagine um cenário de uma bela paisagem ao amanhecer e como todo o céu é aquecido pela primeira luz suave do dia. Depois, pense no mesmo lugar ao meio-dia quando o sol está mais feroz. O tempo gradualmente faz cócegas até o anoitecer e, finalmente, tudo é dissolvido na escuridão.

Incorpore todas essas imagens em si mesmos. Nossa existência é como a flor que um dia desaparecerá. Assim como o sol que precisa deixar o céu todos os dias, todos nós teremos que deixar esta Terra mais cedo ou mais tarde.

Todos nós teremos que deixar esta Terra. Ninguém sabe quando esse tempo virá. Talvez no próximo ano. Talvez no próximo mês. Ou talvez amanhã.

Vamos imaginar que hoje é o último dia em que viveremos nesta Terra. Não teremos um amanhã. Quando o próximo dia chegar, nosso corpo ficará deitado imóvel, não será mais capaz de sentir nada, nem mesmo a própria respiração.

Vamos imaginar que nas próximas horas, todas as pessoas que conhecemos, com quem conversamos e rimos, aqueles que sempre fizeram parte de nossas vidas, não poderemos mais vê-las novamente. Sem exceções.

Considerem a imagem de nossos pais, filhos, irmãos e irmãs que conhecemos todos os dias. Teremos que deixá-los todos nas próximas horas. Imaginem o rosto do(a) nosso(a) amado(a). A hora de deixá-lo(a) está prestes a chegar. Imaginem em quanto tempo teremos que deixar todos os amigos para trás. Não poderemos mais vê-los novamente.

Pense no que aconteceu esta manhã. Quem nós vimos? O que fizemos? Pense no tempo que passamos durante o café da manhã.

Pense no tempo em que fomos ver nossos filhos na escola. Pense nos amigos que conhecemos na sala de reunião.

Pense em todos os objetos de valor que temos trabalhado para adquirir. Casa, carros, joias, dinheiro, todas as coisas que nos acostumamos a ver com valor. Em breve teremos que desistir de tudo que possuímos.

Pense em todo o trabalho que amamos e nos dedicamos ao longo de todos esses anos. Seja o que for, não teremos mais a oportunidade de fazer nada agora. Todo o trabalho que ainda não foi feito, faltará tempo para terminá-lo agora.

Em breve, o mundo que conhecemos, todas as nossas vidas desaparecerão. Não haverá mais nada. Nada mesmo. O fato é que todas as nossas vidas chegarão ao fim nas próximas horas.

Agora volte-se para explorar seus sentimentos nesse momento. Como estamos nos sentindo? Estamos com medo? Contemple esse medo. Sinta-o. Reconheça-o. Do que exatamente estamos com medo? Onde esse medo se localiza, afinal? Compreenda este sentimento chamado medo. Observe cuidadosamente suas próprias reações.

Estamos preocupados com algo? O que achamos que é o mais difícil de deixar para trás? Nosso pai e mãe? Nosso(a) amado(a)? Nossos filhos? Amigos? Riqueza? Trabalho?

Mantenham seus corações calmos. Contemplem se tudo no que pensamos nos pertence – são realmente nossos? Podemos levá-los conosco? Ou estão apenas colocados sob nossos cuidados apenas por um tempo? Agora é hora de deixá-los para que outros possam cuidar deles e fazer uso deles.

Por todo o trabalho que fizemos, agora é hora de ceder. É hora de outros assumirem. Já deixamos legados suficientes nesta Terra. Agora eles são parte desta Terra e não nossos. Não são mais com o que devemos nos preocupar.

Nossos pais, filhos, irmãos e irmãs e todos os que amamos e tivemos a sorte de dividir um lar por um tempo. Fizemos o que deveria ser feito. Agora é hora de descansar. Não se preocupe se eles serão ou não capazes de viver sem nós. Nós já os deixávamos sozinhos antes. A única diferença é que, desta vez, teremos que deixá-los por mais tempo do que antes.

Em breve teremos que deixar este corpo. Este corpo não é nosso. Nós o tomamos emprestado da natureza.

Nós recebemos este corpo gratuitamente por meio dos nossos pais. Agora é hora de devolvê-lo à natureza. Agora é hora deste corpo retornar a todos os quatro elementos da natureza – a Terra, a água, o vento e o fogo.

Agora é hora de nos livrarmos de todo sentimento de culpa, ansiedade, remorso. Não deixe que esses sentimentos sobrecarreguem seu coração. Não é tarde demais para pedir perdão. Vamos agora pedir para todos que alguma vez machucamos ou prejudicamos que nos perdoem. Que nós todos sejamos livres de animosidade uns para com os outros.

Se ainda guardamos rancor ou sentimentos de vingança em relação a alguém, abandone-os. Não deixe que sentimentos ruins corroam vocês por dentro. Perdoe-os. Perdoe todos que nos causaram sofrimento. Libertem seus corações de todo ódio e raiva. Que todos nós vivamos em paz.

Finalmente, abandone tudo que costumamos ver como nosso. Desista de tudo, inclusive de nós mesmos. Na realidade, não há nada que possa ser pensado como  sendo nosso, até mesmo aquilo que chamamos de “meu/minha”. Não são realmente nossos. Desista de todo apego à noção do eu. Não especule sobre o que nos acontecerá, de que forma renasceremos. Basta lembrar que o que quer que seja, será [outra causa de] sofrimento. Não há nada para se agarrar ou permanecer. Desista de tudo, seja o passado ou o futuro. Mantenha sua mente no estado de paz, vazio, a bem-aventurança da liberdade total”.

Texto original: http://www.visalo.org/englishArticles/embracingDeath.htm
Tradução: Tiago Ferreira

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