De Ajahn Sujato
Este post começou como uma resposta a uma pergunta originalmente levantada por Glenn Wallis, e chamou minha atenção novamente graças a Buddhadhamma. Obrigado por trazerem o tema à tona novamente. Há muitas perguntas levantadas aqui, e eu tento o meu melhor, mas nem sempre consigo responder a todas. O tempo avança, e às vezes eu negligencio ou esqueço as coisas. Portanto, se você fez uma pergunta e eu não a respondi, lembre-me.
A pergunta original de Glenn Wallis foi:
Você não acredita, além disso, que as opiniões do Buda – ou de Gotama – mudaram com o tempo, mesmo depois do seu “despertar”? Anicca se aplica a tudo no universo, exceto à cognição do Buda?
Se me lembro bem do contexto, perguntei a Glenn se seus pontos de vista haviam mudado, porque em certos lugares ele escrevera sobre ‘Um manifesto budista’, enquanto em outros lugares escreveu sobre ‘Não-budismo especulativo’.
De qualquer forma, independentemente do contexto original, a pergunta é interessante e gostaria de discuti-la a partir de alguns ângulos.
Bem, o vassa de 2011 acabou há pouco. Está finalizado no presente, estará finalizado amanhã e estará finalizado para sempre. O estado de “finalizado” é, se assim preferir, um estado permanente. Mas isso não significa que minha percepção desse estado seja permanente. Às vezes penso no fim do vassa, às vezes me lembro disso e às vezes não.
Parece-me que o mesmo se aplica ao Nibbana. Na sua forma mais simples, isso significa apenas a cessação da ganância, ódio e ilusão. Para o Buda, ou qualquer arahant, tais coisas estão finalizadas. Amanhã ainda estarão e sempre estarão. Portanto, nesse sentido, o Nibbana é “permanente” – embora isso não seja exatamente o que normalmente queremos dizer com a palavra “permanente”. No entanto, o Buda nem sempre pensa no Nibbana. Às vezes ele pensa, reflete, lembra-se ou está consciente de outras coisas. Portanto, a cognição do Buda fica mudando – ou seja, para o Buda ou qualquer outro arahant, essa vida ainda é um processo condicionado dos cinco agregados.
Então, falar do Nibbana como “permanente” nesse sentido não é problemático, parece-me. Só se torna problemático quando concebemos o Nibbana como algum tipo de “estado” existente: uma realidade ou consciência incondicionada. Mas, como discuti em postagens anteriores, não compactuo com essa opinião.
Sobre se as visões do Buda mudam, precisamos distinguir cuidadosamente o que queremos dizer aqui. Uma “visão” é uma noção um tanto abstrata que nem sempre está presente – ou talvez nunca realmente esteja presente – na consciência. O que está presente é um pensamento ou ideia específica que é representativa dessa visão.
Por exemplo, sou da opinião de que 2 + 2 = 4. Eu mantenho essa visão por um longo tempo e, com toda a probabilidade, sustentarei essa visão pelo resto da minha vida. É possível, suponho, que algo possa aparecer e me convencer do contrário; mas, com exceção de algum contexto exótico na matemática ou na física avançada, é tão improvável que isso possa ocorrer que podemos descartar tal ideia. Portanto, essa visão é, para fins práticos, “permanente”.
Mas essa afirmação precisa ser levada em consideração – daí as minhas “aspas”. Não é permanente no sentido de ser uma estrutura existente que permanece para sempre sem nenhuma mudança. É permanente no sentido muito mais limitado e vago de ser um padrão que se repete de maneiras reconhecidamente semelhantes, razoavelmente consistentes e previsíveis ao longo do tempo.
Obviamente, a manifestação real de uma visão vai mudar. Eu sei que 4 pessoas cabem em um carro que tem 2 lotes de 2 assentos. Eu sei que 2 bilhetes de trem de US$ 2 custarão US$ 4. Cada vez que penso nisso, os exatos pensamentos serão diferentes. Mas o padrão é o mesmo, e é esse padrão de pensamento e ideia, e assim por diante, que chamamos de “visão”.
É por isso que algumas escolas do budismo argumentam que “conceitos” (pannatti) são permanentes ou incondicionados. Até os Theravadins, geralmente tão rigorosos em assuntos doutrinários, titubearam um pouco sobre essa questão, sugerindo algumas vezes que os conceitos eram, de certo modo, não impermanentes. A manifestação real de um conceito é obviamente impermanente, mas o próprio conceito é apenas uma abstração que na verdade não “existe” e, portanto, não pode ser impermanente.
É nesse sentido que eu diria que as opiniões do Buda sobre assuntos importantes do Dhamma são “permanentes”. Ele chegou à sua profunda compreensão da verdade, e a visão só vai mudar se a verdade for outra. Mas, como a visão do Buda estava realmente correta, não há necessidade de mudar sua visão, assim como não preciso mudar minha visão de que 2 + 2 = 4.
Isso não quer dizer que ele não mudaria de opinião sobre coisas que não são intrínsecas ao Dhamma. Pelo contrário, os primeiros textos o registram mudando de ideia muitas vezes. Tomemos, por exemplo, o caso em que ele inicialmente decidiu não ensinar o Dhamma, mas foi persuadido a mudar de ideia por Brahma. Deixando de lado a questão da historicidade dessa passagem, certamente registra que a tradição budista primitiva pensava que o Buda poderia mudar de ideia. Mas isso não era uma questão fundamental do Dhamma. Foi um ponto pragmático: as tentativas de ensinar o Dhamma serão realmente eficazes?
Isso é realmente uma mudança de visão? Bem, talvez sim, talvez não. Realmente depende do que estamos nos referindo quando falamos de pontos de vista. Embora isso possa ter um sentido muito mais claro ou mais vago na linguagem cotidiana, no contexto budista, geralmente se refere à estrutura conceitual fundamental do Dhamma.
Se olharmos para os ensinamentos reais do Dhamma do Buda, não vejo nenhuma evidência específica de que ele tenha mudado o que ensinou ao longo do tempo de maneira fundamental. Houve várias tentativas de mostrar que ele o fez, principalmente com base na noção de que o Atthakavagga do Suttanipata representa um estrato especialmente precoce da literatura budista. Mas não estou convencido por esses argumentos, tanto porque não acho que o Atthakavagga seja mais antigo que muitos dos Suttas em prosa convencional, e porque acho que ele não ensina uma doutrina substancialmente diferente.
O que provavelmente aconteceu é que o Buda mudou a maneira como ensinava. Isso seria bastante apropriado, dada a rápida mudança e desenvolvimento de seus seguidores ao longo dos anos. Nos primeiros tempos, havia um pequeno grupo de seguidores dedicados e realizados, enquanto nos últimos anos havia muitos seguidores menos dedicados e menos inteligentes. Além disso, os mais velhos já haviam aprendido totalmente o básico e queriam ensinamentos mais detalhados (por exemplo, o Mahanidana Sutta); e havia uma crescente especialização em diferentes áreas, como a Vinaya, análise sistemática (proto-Abhidhamma) ou o ensino leigo. Infelizmente, embora pareça quase inevitável que tais mudanças ocorram, a falta de cronologia interna nos Suttas dificulta a avaliação de como ou quando isso ocorreu.
Então, para resumir tudo isso, acho que podemos falar da experiência Desperta como “permanente” em pelo menos alguns sentidos. É “permanente” no sentido de que ocorre uma cessação permanente de ganância, ódio e ilusão. E é “permanente” no sentido de formar uma visão da realidade que é essencialmente correta e que não precisa mudar com o tempo.
No entanto, nenhum desses sentidos de “permanente” é realmente o que queremos dizer quando falamos de permanência. Há muitas coisas comuns ao nosso redor que são “permanentes” no mesmo sentido. Não é uma permanência de coisas existentes.
Essa é uma pergunta difícil dentro da filosofia budista que foi levantada e discutida várias vezes ao longo dos anos. Espero que este pequeno post ajude a tornar as coisas um pouco mais claras.
Texto Original: https://sujato.wordpress.com/2011/10/14/are-the-buddhas-views-permanent/
Tradução: Tiago Ferreira