A Arte da Vida Leiga (Parte II)

A maior parte dos ensinamentos do Buda foi dada a monásticos. Mas e quanto aos praticantes leigos? Nessa série de estudos que o blog Budismo & Sociedade está publicando semanalmente, o Bhikkhu Cintita Dinsmore discorre sobre a arte de viver do budista leigo. Nesse segundo de dez capítulos, o monge explica que uma “vida monástica” também pode ser praticada pelo leigo e que isso significa que leigos também podem ter uma vida de renúncia adaptada ao seu estilo de vida. Apesar da palavra “renúncia”causar receio em ocidentais, ele explica que é importante o leigo realizar, em alguma medida, renúncias mentais e físicas.

Seja um chefe de família ou renunciante, é por sua prática correta que elogio, não pela prática incorreta –

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Resumindo o que foi dito semana passada, o budismo é praticado por pessoas diferentes em muitos níveis diferentes. Ele é mais coerentemente definido por uma meta primária na escala de intensidade de prática. A meta primária pode ser descrita da melhor forma como o nível do Buda. Aqueles que deixam a desejar em relação à prática do Buda não são maus budistas ou praticantes péssimos, e não deveriam se sentir culpados se não conseguirem deixar suas famílias a fim de “sair do lar” aderindo à vida monástica, por não desistirem de seu modo de vida e por assistirem um espetáculo ou mesmo tomarem uma cerveja.

É importante entender isso. No budismo, nossas vidas deveriam se inclinar em direção à meta primária; poucos irão chegar próximos dessa meta, pelo menos nessa vida. É diferente de outras práticas religiosas mais comuns. O Islã, por exemplo, pode exigir dos bons muçulmanos que se curvem em direção à Meca todo dia, porque apesar de ser inconveniente, quase todos conseguem fazer isso e encerra virtude, então se pede que façam isso e não que se inclinem nesse sentido. O budismo não poderia exigir que bons budistas meditassem com sua mente no vazio por várias horas todos os dias, porque quase ninguém conseguiria; então se exige das pessoas menos que uma obrigação imediata de fazer isso.

Agora, há uma variedade de práticas budistas ideais que provavelmente todos os leitores já trouxeram para suas vidas, como meditação, recitações, prática de generosidade, seguir preceitos, estudar e ouvir palestras do Darma, ler artigos como este… Porém, essas coisas entram em atrito com tudo o mais em nossas vidas ocupadas que não é inspirado pelo budismo, como se divertir ou trabalhar para viver. Daí provém uma questão importante à luz do princípio mais básico da prática budista:

Eu sou dono de minhas ações (kamma), herdeiro de minhas ações, nascido de minhas ações, relacionado através de minhas ações, e tenho em minhas ações um árbitro. O que dizer, para o bem ou para o mal, disso eu me tornarei herdeiro – AN 5.57

Isso quer dizer que o seu desenvolvimento na direção do aperfeiçoamento do caráter é um produto das suas ações – todas suas ações de corpo, fala e mente. Agora, a prática consiste de ações, incluindo ações da mente durante a meditação, mas todas as outras coisas que você faz também são ações e você também é herdeiro delas. Para o caminho de desenvolvimento não há nenhuma diferença entre o que você está fazendo no trabalho do que você está fazendo no centro budista local. É de imensa importância que você esteja ciente disso porque nossas vidas facilmente sobrepujam nossa prática. Enfatizar esse aspecto nunca é demais, por isso vou trabalhar novamente com essa questão pela segunda semana consecutiva com outra analogia.

Suponha que você está tricotando um agasalho. Talvez você tenha uma hora por noite para trabalhar nele, então leva um número de semanas para terminar. Você o coloca de lado quando tem outras coisas para fazer e pega de novo quando retorna para continuar onde parou, e desse modo você faz um progresso contínuo e nunca volta atrás. A prática não funciona assim.

Suponha agora que você está tricotando um agasalho, mas nunca te permitem deixar ele de lado: você tem que vesti-lo (ou o que tiver dele) enquanto tricota. Dessa forma, se você está lavando louça, fazendo uma apresentação no conselho, trocando um pneu – ele continua no seu corpo. É assim que é a prática. Isso significa que a prática facilmente se contamina ou se desfaz por causa daquilo que você faz com o resto de seu dia.

Como budistas vocês podem fazer uma escolha muito radical, que é simplesmente esvaziar suas vidas de tudo o mais a fim de dedicar a si mesmos em tempo integral puramente às práticas budistas ideais. Essa é a base da vida monástica: a vida de renúncia. A razão pela qual muitos fazem essa escolha muito radical é que o caminho budista é sofisticado, difícil de dominar, é muito profundo, realmente exige esforço intenso e consistente, e traz enorme recompensa. Porém, essa escolha radical interessa a relativamente poucas pessoas. Apesar de a vida leiga ser uma escolha menos radical, ela pode comportar esforço comparavelmente intenso e consistente… caso seja implementado corretamente.

Perceba que eu me refiro à “vida monástica” ao invés de “ser monja ou monge”. Viver uma vida monástica é diferente da ordenação formal. A ordenação formal oferece um contexto social que torna fácil viver uma vida monástica e tem outros papéis críticos no budismo, mas o estilo de vida é a consideração chave na arte da vida leiga. De fato, há muitos que formalmente são leigos e vivem vidas estritamente monásticas e muitos monásticos ordenados que evitam vidas estritamente monásticas, e o fruto da prática corresponde visivelmente à essas circunstâncias. Então, “vida monástica” é algo relativo; alguns vivem vidas mais monásticas que outros; é provável que você já viva mais “monasticamente” que seu vizinho.

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Leigos budistas celebram na Malásia

A arte da vida leiga é, em essência, viver do modo mais monástico o possível com o entendimento que nossas vidas incluirão alguns elementos que não são as práticas budistas ideais. Com habilidade e planejamento cuidadosos, a vida leiga pode, ainda sim, levar a um rápido progresso no Caminho.

Semana passada, eu falei a arte do malabarismo. Aqui está a arte da vida leiga em resumo:

            A Arte da Vida Leiga:

Selecione: Escolha com cuidado que elementos você quer inserir em sua vida. Lembre-se que uma vida leiga é o meio termo entre as práticas budistas ideais e quaisquer outras coisas que você valorize, se sente obrigado a fazer ou apenas ache legal. Se você é como a maioria das pessoas, já sente que sua vida é cheia e ocupada, e agora está tentando encontrar espaço para a prática budista também. Invista nessa questão e selecione o que realmente é importante.

Por exemplo, “família” é um valor central e uma obrigação para uma provável maioria. “Sucesso nos negócios”, “aparência pessoal”, “romance”, “ópera”, “futebol” podem ser outros. Manter os valores centrais pode incluir trazer outros elementos para sua vida: para manter uma família você precisa do seu emprego, que pode, por acaso, ser a fabricação de minas terrestres para exportação. Se pensar bem, você não precisa de fato jogar videogames por horas e horas.

Rejeitar: Agora deixe de lado tudo que você pensa que é importante mas que não tem lugar no malabarismo de uma vida budista. Algumas coisas provavelmente não se enquadram por razões éticas; elas são significantemente danosas. Outras podem não ter lugar porque tornam a mente perigosamente vulnerável, destruindo a serenidade e levando à confusão e ignorância.

Por exemplo, seu emprego de fabricar minas terrestres é claramente um Modo de Vida Incorreto, e vai pesar em você carmicamente. A preocupação obsessiva com sua aparência pessoal está à serviço de uma noção de identidade doentia. Comece a ponderar quais elementos de sua vida resultam em violações dos preceitos, tais como matar, roubar, mentir… Então considere o que a paz de espírito exige. Em nosso mundo moderno, nós tipicamente fazemos malabarismo com elementos que são bastante tóxicos para a prática e que eram totalmente desconhecidos no tempo do Buda, como o uso inábil de mídias eletrônicas. Algumas escolhas claras são críticas nesse nível.

Equilibre: Os elementos que sobraram são razoavelmente compatíveis com o desenvolvimento do caminho se o malabarismo for feito habilmente. Agora, eles podem, em geral, ser amoldados na forma de práticas budistas através da afinação de seu relacionamento com eles.

Por exemplo, podemos aprender a tratar alguns dos elementos que restaram de uma forma menos egocêntrica. Para além de valorizar a família em si mesma, você pode pensar nela como meios de obtenção de vantagem pessoal. Por exemplo, ter uma linda esposa ou marido e filhos, e um filho que entrou para Harvard aumenta seu prestígio. Um belo marido ou esposa podem aumentar o nível de seu prazer sexual. Frequentemente, se sua família, especialmente seu cônjuge, não satisfaz suas necessidades, segue o divórcio. Porém, você pode partir dessa relação autocentrada com a sua família – e, de modo semelhante, com outros elementos de sua vida – para desenvolver um senso de devoção completo à família, que é trata-la como algo valioso em si mesmo, de um valor inquestionável que rivaliza o refúgio no Buda, Darma e Sanga. Você pode também aprender a desenvolver as tarefas do dia-a-dia com atenção plena, como práticas de meditação e com total clareza das consequências éticas. Em resumo, as coisas que você escolheu incluir em sua vida por razões além da prática podem ser usadas para a prática.

Simplifique. Para além disso, viva como um monástico. Se livre do entulho, do papo furado, dos hábitos e impulsos que, de outro modo, atrapalharia seu malabarismo e que não apoiam diretamente o que você, através do processo descrito acima de sábia reflexão, decidiu incluir em sua vida.

Por exemplo, tente ser um pouco mais recluso e não passe muito tempo fofocando, não compre impulsivamente, reduza suas despesas e gasto de tempo com afazeres menores, organize sua vida com essas coisas em mente. Você pode querer mudar para uma casa pequena na cidade para evitar a longa viagem do subúrbio e o preço do aquecimento/ar condicionado. Evite atentamente tudo que envolve o “eu” menor. Libere tempo e dinheiro vivendo com menos coisas.

Nas próximas semanas vamos olhar para cada um desses passos – Selecione, Rejeite, Equilibre e Simplifique – individualmente e em detalhe.

O ingrediente chave de qualquer estilo de vida budista e da arte da vida leiga é a renúncia. Essa não é uma palavra popular no budismo ocidental, e a maior parte dos professores budistas americanos vai evitar seu emprego. Eu creio que isso acontece porque quase tudo o mais em nossa cultura nos inclina para o outro lado, em tal grau que a palavra sugere algo subversivo. Todo mundo sabe que monásticos são renunciantes, mas os leigos?

Há duas formas de renúncia: mental e física. Ouvirmos falar do abandono dos apegos; isso é a renúncia mental, que também pode ser descrita como largar qualquer apreço que você tenha pelas coisas. O que descrevi acima é renúncia física, ou seja, deixar de lado coisas e atividades em si. A renúncia física é o que muitos consideram mais difícil. Alguns professores te dirão que você não precisa se preocupar com renúncia física, pois ela será uma consequência natural do seu domínio da renúncia mental. Temos aí uma inversão da ordem.

Primeiramente, se você ler os preceitos monásticos, que definem o que é ser um monástico, vai encontrar algo interessante: eles são todos a respeito da renúncia física; não há preceito sobre o abandono de algum pensamento. Isso não quer dizer que os monásticos iniciantes se tornaram mestres da renúncia mental, mas sim que esse é o melhor que eles podem fazer ou serão infelizes pelo resto de suas novas vidas.

Em segundo lugar, a renúncia em contextos críticos da vida (fora do budismo) não envolve adiar a renúncia física. Considere quem larga o hábito de beber ou fumar. É bem difícil começar o longo processo de reabilitação sem primeiro deixar o ato físico de beber ou fumar logo de início. Ninguém começa a trabalhar com a mente para remover todo desejo de beber ou fumar primeiro enquanto bebe e fuma, para depois esperar que esses hábitos desapareçam sozinhos. Eu acho que a prática budista é um tipo de reabilitação do abuso generalizado de substâncias, algo como “Samsáricos Anônimos”.

Em terceiro, a renúncia física é bem mais fácil que a renúncia mental e é um auxílio para ela. É por esse motivo que os monásticos, assim como os alcoólicos em recuperação, primeiro desistem do ato físico, para em seguida se concentrar no processo de fazer suas mentes seguirem o exemplo do corpo. A renúncia mental pode ser muito, muito difícil, e requer ajuda física. A mesma coisa acontece com a prática de meditação, na qual renunciamos à mente do macaco, o constante pensar. Perceba que não funciona, pelo menos para os novatos, decidir simplesmente parar de pensar tanto. Começa-se pelo aquietamento do corpo, encontrando uma posição confortável, uma postura estável tal como sentado ao invés, digamos, de caminhar ou correr em círculos. A mente logo segue o exemplo do corpo.

 Se isso soa desconcertante, não se esqueça que a prática budista é tão suave e indulgente quanto você quiser. Não é necessário dominar toda a arte da vida leiga de uma vez só. Os quatro passos do processo deveriam ser trabalhados gradualmente. De início, pode haver resistência à renúncia de festas loucas ou do enorme prestígio que vem junto com seu BMW, assim como a falta de entendimento de como você poderia se beneficiar de renunciar a tais coisas. Bem, pelo menos desista de seu trabalho como pistoleiro do crime e se torne um artesão. Você vai notar que sua meditação melhora com o tempo e que um senso de bem-estar se instala. Com o tempo, você pode voltar a pensar nas festas loucas e no carro que aumenta o seu prestígio com uma mente mais estável, clara e desenvolvida. Minha experiência pessoal é que eu basicamente trabalhei essas questões ao longo de muitos anos de tal modo que não restou nada, então acabei me tornando um monge. Não é preciso que você chegue a tal ponto, mas esteja avisado que isso pode acontecer!

Traduzido por Luiz Fernando Rodrigues

Revisão: Tiago da Silva Ferreira

Links:
A Arte da Vida Leiga Parte 1

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