Uma resposta budista a Deus: uma crítica ao debate entre William Lane Craig e Sam Harris

É preciso acreditar em Deus para ter uma base ética sólida? Para muitas pessoas, Deus é a fonte única e primordial da Moral e da Ética. Teístas costumam argumentar que pessoas sem Deus estariam livres e inculpáveis de praticarem atos danosos à sociedade. Se isso for verdade, os budistas (sendo não-teístas) não teriam base alguma para constituírem uma ética própria. Neste texto, Craig S. Shoemake não só argumenta que depositar a Moral em Deus seria um equívoco, como também afirma que o Buda histórico teria proposto uma base mais consistente para a ética e a moral sem precisar recorrer a divindades. Segundo o autor, a ética (Sila) budista se baseia em diminuir o sofrimento em nós mesmos e nos outros através do cultivo de ações mentais, verbais e físicas consideradas hábeis.

De Craig S. Shoemake

Em seu debate com Sam Harris, o apologista cristão William Lane Craig usou o que é tecnicamente conhecido como o “argumento da moralidade” para derrubar a concepção ética de Harris. Normalmente, o Argumento da Moralidade é usado para provar a existência de Deus, mas Craig disse especificamente que “não estaria argumentando… que Deus existe”. Em vez disso, ele inferiu:

(1) Se Deus existe então temos uma base sólida para valores e deveres morais objetivos. (2) Se Deus não existe, então não temos uma base sólida para valores e deveres morais objetivos.

A razão pela qual esse debate é de interesse para os budistas deveria ser óbvia. O budismo é uma religião/filosofia intrinsecamente ateísta. Isso não quer dizer que o Buda não reconheceu a existência do que pode ser melhor descrito como “seres invisíveis” (devas), mas esses seres, seja lá como queira chamá-los, não são “Deus” no sentido de uma divindade abraâmica: eles não criaram o mundo, não são responsáveis ​​por eventos cósmicos, e embora perdurem muito, não são imortais. Outras diferenças poderiam ser acrescentadas, mas o ponto mais importante é que as agências não humanas são, em última instância, inconsequentes quanto à prática do caminho budista. Dessa forma, se o Dr. Craig estiver correto, o ensinamento do Buda não tem fundamento ético e os budistas estão por sua conta e risco com seus delírios de grandeza moral. Meu propósito na primeira parte deste ensaio é mostrar por que Craig está incorreto e, na segunda, mostrar como os ensinamentos do Buda sobre ética fornecem, de fato, a base necessária para a vida ética.

Normalmente eu não sentiria necessidade de acrescentar nada ao que Sam Harris diz. Dos chamados novos ateus, ele é de longe o meu favorito, um excelente contador de histórias, um pensador claro e sensato, bem-humorado e espiritual em essência. O cara manja – e dá conta quando é necessário. Com o Dr. Craig, no entanto, Harris hesitou, embora não porque Craig ofereceu um argumento particularmente bom. Ele não ofereceu. Harris, ao que parece, tinha um roteiro e o seguiu em grande parte, até o ponto em que deixou as objeções de Craig sem resposta. O resultado foi uma aparente vitória para Craig. Meu esforço aqui, portanto, é abordar as brechas no argumento de Craig que Sam Harris não explorou e depois oferecer algo em seu lugar.

Os problemas de Craig começam com a segunda palavra do seu argumento: “Deus” (“Se Deus existe…”). A razão pela qual esta palavra é um problema é a falta de uma definição para ela. Dado que todo o argumento dele depende de Deus como uma fonte de sentido e ação moral, é surpreendente que nunca tenham solicitado a ele que identificasse ou descrevesse esse deus. Embora possamos supor que ele queira dizer o Deus de Abraão (“Yahweh”), isso não elimina o problema, pois qualquer tipo de omissão, se injustificada, é arbitrária. Será que ele quer dizer o deus do Antigo Testamento que patrocina o genocídio e a limpeza étnica, o sacrifício de animais e outros atos moralmente questionáveis? Será que ele quer dizer o deus do Novo Testamento (“Jesus”) que proferiu o Sermão do Monte, ou melhor, o mesmo Jesus que condena a maioria da humanidade ao castigo eterno por não acreditar nele? Se não é nenhum desses, talvez seja Alá do Alcorão, ou Shiva ou Vishnu ou Kali ou Avilokateshvara ou Zeus. Dessa forma, primeiro ele deve decidir de que Deus está falando e nos dizer.

Segundo, seria melhor que ele desse argumentos convincentes para justificar sua escolha daquele Deus em particular. Optamos por Yahweh porque ele é o mais popular? Note, ele nem sempre foi o mais popular. Antigamente, Ahura Mazda (dos zoroastristas) era muito mais popular. Atualmente, a encarnação muçulmana de Yahweh-Allah está alcançando [em números de fiéis] a versão bíblica, de modo que a popularidade pode deixar de ser favorável ao Dr. Craig. Não sei bem quais outras razões podem ser invocadas para escolher uma divindade em particular; geralmente é só uma questão de com qual deus você foi criado. Mas talvez o Dr. Craig tenha alguns critérios objetivos para classificar uma divindade como superior a outra. Se for o caso, ele deve explicá-las antes de começar a nos contar sobre a natureza de Deus.

Terceiro, como o deus que ele escolhe comunica seus desejos aos seres humanos? Craig deve discutir não apenas os meios, mas oferecer alguma prova da validade do modo particular de comunicação de sua divindade, seja a revelação profética (como é usualmente o caso na tradição abraâmica) ou sonhos ou drogas ou entranhas de animais ou o que quer que seja. Ele precisa nos dar alguma razão pela qual devemos considerar a visão de Ezequiel de discos voadores como superior às visões de alguém que acabou de fumar meio quilo de ganja e conversou com um deus cobra que usa barbas. Deixar de levar em consideração qualquer um dos três pontos acima deixa a referência de Craig a Deus como uma mera proposição teórica, algo que ele poderia simplesmente ter feito em prol do debate.

Craig prossegue argumentando que “o teísmo fornece uma base sólida para valores morais objetivos” e “para deveres morais objetivos” (grifo nosso). Em outras palavras, supostamente fornece a razão ou base para a ética, bem como os modos particulares pelos quais essa razão ou base deve ser operacionalizada. Acabei de notar os problemas de invocar o teísmo sem explicar qual teísmo, mas começamos a ter uma ideia do que Craig está falando no próximo parágrafo. Ele diz:

Como Santo Anselmo entendeu, Deus é, por definição, o maior ser concebível e, portanto, o Bem maior. De fato, Ele não é apenas perfeitamente bom, Ele é o locus e o paradigma do valor moral. A própria natureza santa e amorosa de Deus fornece o padrão absoluto contra o qual todas as ações são medidas. Ele é por natureza amoroso, generoso, fiel, gentil e assim por diante. Assim, se Deus existe, existem valores morais objetivos, totalmente independentes dos seres humanos.

Aqui, pelo menos, temos uma definição de Deus; ou pelo menos uma descrição. No entanto, não podemos ter certeza – na verdade, podemos duvidar – de que as observações de Anselmo se apliquem ao Deus bíblico, pois Yahweh no Antigo Testamento tem propensão a se comportar de maneiras que dificilmente poderiam ser chamadas de “boas”, muito menos com B maiúsculo. Assim sendo, talvez conceitos de outras culturas sejam mais úteis aqui. Talvez o rigpa budista tibetano – o substrato ou base da Mente que é eternamente perfeito e puro e que é a fonte de tudo – se encaixe na definição de Anselmo (na verdade, encaixa-se bem). Ou talvez pudéssemos identificar esse “bem maior” com o  Brahman hindu ou o Tao chinês. Qualquer uma dessas identidades se encaixa melhor na definição de Anselmo do que qualquer divindade registrada, incluindo a divindade bíblico-corânica. Infelizmente para Craig, no entanto, ele claramente não tem em mente nenhum desses termos, tendo-se agarrado no mastro do teísmo. Portanto, a definição de Anselmo não nos ajuda de verdade. Foi um recurso atirado tal e qual uma provocação, na qualidade daquilo que Craig quer que acreditemos sobre sua divindade, mas falta-lhe a particularização necessária para sabermos de que divindade ele está falando para além de uma abstração filosófica. Mais precisamente, a descrição de Anselmo e Craig é uma espécie de quimera, que recolhe o melhor de várias “bestas” filosóficas e teológicas e reúne-as em algo que, embora certamente maravilhoso, nunca é identificado e para o qual não nos é dado nenhum motivo para acreditar que realmente exista.

Mas vamos fazer a vontade do Dr. Craig. Vamos supor que “o Deus de Craig” – que é como vou chamá-lo – realmente existe e é de fato a base ou essência de tudo que é bom e digno neste universo. Como, nesse caso, podemos entender o que esse Deus quer para nós? Segundo Craig:

Em uma visão teísta, os deveres morais objetivos são constituídos pelos mandamentos de Deus. A natureza moral de Deus é expressa em relação a nós na forma de mandamentos divinos que constituem nossos deveres ou obrigações morais. Longe de serem arbitrários, os mandamentos de Deus devem ser consistentes com Sua natureza santa e amorosa. Nossos deveres, então, são constituídos pelos mandamentos de Deus e estes, por sua vez, refletem seu caráter essencial.

O Deus de Craig, certamente, se comunicará com os humanos de alguma forma para que possamos saber o que ele considera bom ou mau. Mas de que maneira? Nunca nos dão essa resposta. O sonho que tive ontem à noite – no qual fui ungido rei de Fiji e 1.000 belas mulheres fijianas tornaram-se minhas consagradas escravas amorosas – foi uma revelação divina ou apenas uma tentadora fantasia? Não tenho certeza. Como, no mundo do Deus de Craig, devemos separar a revelação da ilusão? Devo sacrificar o cachorro do meu vizinho em um altar-mor, acendê-lo com querosene e fósforos e extrair predições dos padrões que a fumaça toma no céu? Vamos lançar palitos para o alto e ver como eles caem? Como alguém pode adivinhar (sem trocadilhos) a vontade de uma abstração filosófica? Se não pudermos fazer isso, se não houver uma maneira significativa, objetiva, mensurável e repetível de receber mensagens do Deus de Craig, então Ele permanecerá para sempre escondido, um monumento ao anseio humano, nada mais que uma provocação cósmica.

Craig conclui a primeira parte de seu argumento dessa maneira:

Em resumo… o teísmo tem os recursos para uma sólida base para a moralidade: ele fundamenta tanto os valores morais objetivos quanto os deveres morais objetivos; e, portanto, acho que é evidente que, se Deus existe, temos uma base sólida para valores e deveres morais objetivos.

Mas o que é realmente evidente é que o argumento de Craig nunca decola. Ele não nos forneceu nada suficiente para uma discussão, pois suas abstrações são… bem, abstratas demais para nos providenciar qualquer detalhe. Se não podemos ter certeza a que ele está se referindo quando diz “Deus”, como podemos afirmar que ele está certo ou errado? E mesmo que aceitemos a realidade dessa divindade idealizada e sem nome, ela permanece uma espécie de Valor oculto, algo que não temos como acessar, igual à minha caverna pessoal no Himalaia, que está cheia com dez toneladas de ouro.

Em suma, o primeiro ponto do argumento de Craig, de que se Deus existe, temos uma base sólida para a moral, não chega ao nível de algo que podemos levar a sério ou discutir de maneira significativa. Por mais que tentemos, [seu Deus] é tão inteiramente teórico quanto unicórnios rosa invisíveis. Eles podem existir e até mesmo instruírem periodicamente sobre os segredos da Vida, do Universo e de Tudo MAIS, mas não temos como detectar, medir ou aprender sobre eles, muito menos compreender sua Sabedoria secreta. Eles não passam de algo que eu digo que existem. A menos que Craig possa identificar seu deus com alguma entidade reconhecível, ou nos dizer por que ele a escolheu e oferecer uma metodologia sólida para aprender sobre a Vontade Divina, seu primeiro postulado é natimorto, morre na linha de chegada.

“Então, vamos voltar à minha segunda alegação de que, se Deus não existe, então não temos uma base sólida para valores e deveres morais objetivos”. Com essas palavras, Craig começa seu ataque ao argumento de Harris em The Moral Landscape. Meu esforço aqui será apenas apontar algumas fraquezas na refutação de Craig contra Harris.

Craig afirma:

Na visão ateísta, os seres humanos são apenas subprodutos acidentais da natureza que evoluíram de modo relativamente recente em uma partícula infinitesimal de poeira chamada planeta Terra, e que estão destinados a perecer individual e coletivamente em um tempo relativamente curto. No ateísmo, é difícil ver qualquer razão para pensar que o bem-estar humano seja mais objetivamente bom do que o bem-estar de insetos, ratos ou hienas.

Para mim, esta é uma afirmação intrigante. Seu principal problema é sua estreiteza. Craig parece assumir que, se você não é um teísta da estirpe dele, deve ser 1) naturalista, 2) materialista, 3) niilista e 4) muito provavelmente deprimido, desanimado, sombrio ou pessimista. Tudo isso está implícito no que ele diz tanto aqui quanto depois. No entanto, não consigo enxergar como ele pode fazer tais suposições sobre todas as pessoas ao longo da história e sobre as que estão vivas hoje, que acreditaram em algo diferente do Deus dele. Em outras palavras, sua alegação indica uma falta de imaginação grave – quase fatal. Ele não se pergunta por que tantas pessoas continuam a se levantar todo santo dia, fazem o bem e tentam tornar o mundo um lugar melhor de alguma forma, sem referência à divindade dele? E, no entanto, é o que elas fazem; isso precisa ser explicado.

Este é um sério obstáculo para Craig. Assumindo que sua segunda alegação é correta, que “se Deus não existe, então não temos uma base sólida para valores e deveres morais objetivos” – como precisamente tantas pessoas sem relação com o deus dele conseguem se comportar de modo ético? Ou a moralidade delas é um acidente fortuito, que ocorre com uma inexplicável frequência, ou de alguma forma as coisas ocorrem devido a algum tipo de placebo que substitui a “verdadeira” fonte da moralidade. Mas, se parece um pato, faz som de pato e anda como pato, em algum momento não se deveria reconhecer a probabilidade de ser mesmo um pato? Em outras palavras, mesmo que as maneiras pelas quais as pessoas expressem suas motivações éticas divirjam, não seria verdade que há, de fato, uma inexplícita lei psicológica que está conduzindo a um semelhante – isto é, genuinamente moral – comportamento? É óbvio que Craig não quer considerar essa possibilidade, pois isso mina toda a sua ideologia.

Craig encerra sua análise da base naturalista da moralidade citando Darwin:

Se… os homens fossem criados precisamente nas mesmas condições que as abelhas, não há dúvida de que nossas fêmeas solteiras achariam, como as operárias, que é um dever sagrado matar seus irmãos, e as mães se esforçariam para matar suas filhas férteis, e ninguém pensaria em interferir (Charles Darwin, The Descent of Man and Selection in Relation to Sex, 2nd edition, New York: D. Appleton & Company, 1909, p. 100)

Em outras palavras, do ponto de vista naturalista, a “moralidade” é tão somente um acaso, resultado de vantagens de sobrevivência e genes competindo por parceiros, etc. Não haveria como objetivamente dizer que a liberdade é melhor que a escravidão, ou a democracia melhor que o despotismo. “Moralidade” é simplesmente um resultado social, evolutivo e fortuito que justificamos depois do fato. Esse argumento pressupõe um universo binário simplista que é ou um (Deus existe) ou outro (evolução e seleção natural animal dão origem ao que nós, por falta de um termo melhor, chamamos de “moralidade”). Não há outras possibilidades, ou pelo menos a imaginação limitada de Craig não permite que ele amplie além dessas possibilidades.

No entanto, mesmo uma pesquisa superficial dos sistemas de valores de outras culturas (hindu, grego antigo, confucionista, budista, nativo americano, etc.) sugere diferentes considerações possíveis em relação à moralidade. Craig, no entanto, não reconhece a existência dessas outras visões de mundo, muito menos considera suas alegações sobre a verdade. Para alguém que quer filosofar sobre ética, esse descuido é indesculpável. É o mesmo que destruir provas em uma cena de crime. O sapato sujo de sangue não cabe no seu suspeito, então ele o joga na lata de lixo. Nitidamente, se ele quer ser sério a respeito do projeto de encontrar a fonte da moralidade, ele deve considerar muito mais possibilidades e levá-las a sério, cada uma por seus próprios méritos.

Minha objeção final à tese de Craig diz respeito ao que eu disse acima. Ele acredita que sem Deus o mundo não passaria de animais matando, copulando, nascendo e morrendo, tudo sem propósito. Minha pergunta é: Como a introdução de uma divindade que não tem unanimidade pode remediar essa situação? Escolha seu deus, por favor. Deixem esse deus, em conjunto com o mundo do materialismo onde macaco-devora-macaco, se desenrolar. Como estariam as coisas, por acaso estaríamos melhores? Fingir que um deus, qualquer deus (ou deuses),  tornaria este cenário melhor ou mais nobre de alguma forma é bobagem. Olhem para a história da religião – olhem para o mundo do Antigo Testamento – e verão que o recurso aos mandamentos divinos não melhorou o comportamento humano. Ao invés disso, o que obtém-se é uma combinação que, longe de ser pura, imaculada e virtuosa, é uma amálgama cinzenta de mandamentos de pureza e assassinato, auto-sacrifício e sacrifício de animais. Não há clareza a ser encontrada nos cânones da lei divina, pelo menos em nenhum que eu tenha lido. E tal posição ainda supõe que os Livros Sagrados são na verdade “revelações” de algo melhor, dos céus, ou no mínimo algo mais poderoso que os seres humanos.  Nem preciso dizer que esta é uma suposição injustificável.

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A ética budista

Na primeira parte deste ensaio, tentei demostrar como postular Deus – qualquer deus ou deuses – como a fonte da moralidade envolve tantos problemas que não oferece refúgio ao homem ou mulher no mundo que se questiona, com toda a seriedade, a questão ética ‘O que devo fazer?’. Que existe uma resposta para essa pergunta, estou certo, e a melhor  que encontrei, a resposta mais completa e rigorosamente balizada, está nos ensinamentos do Buda histórico.

Eu digo “histórico” para delimitar minhas fontes. Meu interesse aqui é qual foi a resposta de Gotama a essa pergunta, não o que mais tarde seguidores e elaboradores disseram que ele disse. Para isso, temos como fonte o Sutta Pitaka, a “cesta de discursos” encontrada no Cânone Páli da escola Theravada, os únicos documentos que podem reivindicar qualquer vínculo direto significativo com o fundador do budismo. Isso não significa de forma alguma desacreditar as tardias escolas de Budismo Mahayana e Vajrayana, que acrescentaram substantivamente às tecnologias budistas de libertação. Simplesmente, não tenho a perícia (para não mencionar o tempo) para ser abrangente; de fato, essa discussão sobre a ética do Buda será, na melhor das hipóteses, preliminar, indicando possíveis respostas às questões abordadas no debate Craig-Harris.

Na verdade, já escrevi sobre esse assunto. Aqui está uma citação do meu ensaio “Dez perguntas” em resposta a Daryl E. Wittmer:

Qual é, então, o propósito do comportamento ético? O Buda discute essa questão específica inumeráveis vezes através dos suttas. Em suma, adota-se a sila (preceitos éticos) especificamente com o propósito de eliminar as ações mentais, verbais e físicas que dão origem a estados mentais, relacionamentos e consequências negativos que levantam obstáculos à cultura mental (bhavana). Além disso, tentamos nos comportar de maneira generosa, graciosa e compassiva, porque tais modos de comportamento promovem bons estados mentais tanto dentro de nós mesmos como nos outros. Em outras palavras, dependendo do que pensamos, dizemos e fazemos, temos o poder de aumentar ou diminuir o sofrimento em nós mesmos e nos outros. Uma vez que o ensinamento do Buda se preocupa inteiramente com a eliminação do sofrimento (ou seja, a angústia existencial), o comportamento ético é o alicerce sobre o qual todo o resto deve ser construído. Sem isso, a obtenção de estados superiores levando ao [nirvana] está fora de questão.

Esta é realmente a essência. A ética começa com uma pessoa confrontando sua posição vulnerável neste mundo. Elas estão sozinhos, mesmo quando convivem com os outros, porque ninguém pode dizer a elas como viver a sua vida. Mesmo que os outros tentem  fazê-lo (como inevitavelmente fazem), no final de contas, a vida é delas. Só elas sofrem as consequências e usufruem do fruto do que fizeram. Elas são as responsáveis. Como, então, elas podem saber o que devem fazer, o que é certo e o que é errado?

Claramente, esta não é uma questão para tolos ou para aqueles infinitamente perdidos em distrações. Não posso fazer essa pergunta ao meu gato e esperar que ele hesite na próxima vez que encontrar um rato. Inteligência é necessária, maturidade, reflexão. É preciso ver e enxergar o que se pensou, disse e fez. É preciso observar as conseqüências, não apenas na própria vida, mas na vida dos outros, vivos e mortos. A responsabilidade deve ser exercida. Por ventura, se alguém ajuda com o coração – o que chamamos de “compaixão” – entende-se que o sofrimento e a alegria dos outros não é de fato diferente do nosso. Vemos que pensamentos, palavras e ações são coisas que, uma vez produzidas, existem além de nós, mas quase inevitavelmente nos revisitam. Isso é o karma – o condicionamento da mente, do corpo e da vida pelas ações que você tomou.

Não há nada de misterioso ou mágico nisso. Você pensa, você fala, você age. Esses comportamentos afetam o mundo. Eles afetam os outros. Eles afetam você. Essa influência, por sua vez, condiciona seu próximo pensamento, palavra ou ação. Aqui temos, claramente, inescapavelmente, causa e efeito. Se você passar a tocar uma campainha toda vez que come, vai salivar quando a campainha tocar, mesmo na ausência de comida. Você terá formado e moldado sua própria mente, limitando ou expandindo sua experiência e possibilidades.

Qual é a melhor maneira de viver? Quais ações dão origem ao maior bem estar para o maior número de seres? (Notem: esse argumento, como pode ver caso leu a transcrição, é bem próximo do de Harris, que quase certamente foi influenciado pelo pensamento budista nesse tema.) Um Stalin ou Mao nunca farão essa pergunta, e caso o fizerem, nunca farão referência a nada além de suas preocupações imediatas e egoístas. Mais do que inteligência é necessária. A sensibilidade também é primordial – daí os inúmeros treinamentos budistas que visam abrir o coração para a amizade, a alegria solidária e o sofrimento dos outros. Somente quando essas modalidades estão suficientemente amadurecidas, que o karma, em seu sentido mais amplo, pode significar algo para uma pessoa, afetando assim as escolhas que ela faz.

Em última instância, o caminho budista converge para uma transformação total do coração e da mente humanos. É transpessoal, transcendente, mas ao mesmo tempo imanente, pois quem é desperto nunca perde de vista o fato de ainda estar no mundo, estando relacionado a outros seres. Do ponto de vista ético, a mente altruísta, a mente que realizou bodhi ou anatta e sofreu transformação permanente como resultado, é a verdadeira fonte e base da ética. A ética converge na autotranscendência. Pois onde há o eu, há o outro, há separação e divisão e conflito. A ética começa com uma orientação para a não-dualidade ou ausência de ego; são consumados e completados na realização permanente desse estado.

Deveria ser óbvio que a ética budista difere radicalmente da definição de ética de William Lane Craig. Na opinião de Craig, a moralidade é, na verdade, apenas mais uma palavra para obediência – se obedecermos aos mandamentos de Deus, seremos julgados éticos; se não o fizermos, somos antiéticos. É simples assim. Além dos problemas elaborados na primeira parte deste ensaio, deve-se notar que a ética no cenário de Craig é bastante maleável. Se Deus diz que é bom massacrar os pagãos – e em algumas passagens do Antigo Testamento ele diz – então o assassinato é uma virtude. Se ele diz “ame a seu próximo como a si mesmo”, então o auto-sacrifício e a generosidade são julgadas ações morais. A moralidade é, assim, refém dos caprichos de um deus através do tempo. Os espanhóis não estavam em posição de criticar o sacrifício humano feito pelos astecas com base nas escrituras.

Termino com uma última citação do meu ensaio “Dez perguntas”:

Mas e se Deus diz a uma pessoa para amar o próximo, doar aos pobres e oferecer a outra face? E se ele ou ela fizer tudo isso? Certamente eles serão considerados morais, talvez até santos. Tudo isso seria bom; seria maravilhoso se mais pessoas seguissem esse conselho. Mas eu me pergunto: será que tal pessoa entende o propósito da ética melhor do que, digamos, um filhote de cachorro entende por que seu mestre quer que ele se sente, busque [coisas] ou brinque de morto? Eu acho que não. Em última análise, “fazer a vontade de Deus” é um substituto para o ato de pensar e de compreender; é simples obediência. A pessoa de fé pode entusiasticamente cumprir os mandamentos ou fazê-lo relutantemente. De uma forma ou de outra, eles serão cumpridos, mas não porque a pessoa compreende o propósito do comportamento ético.

A verdadeira ética, afirmo, não é simplesmente uma questão de fazer o bem. Mais importante, a ética deve se preocupar sobre ser bom. Esta é uma proposta totalmente diferente, que requer muito mais que simples obediência. Requer inteligência, consideração, consciência e visão de longo prazo. A posição de Craig não pode oferecer isso. A do Buda pode.

Original em inglês: https://buddhistbooksblog.wordpress.com/2012/10/05/craigs-god-part-i-of-a-critique-of-william-lane-craigs-debate-with-sam-harris/
https://buddhistbooksblog.wordpress.com/category/christianity-and-buddhism/
Traduzido por: Tiago Ferreira

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