Integrando a espiritualidade na política popular

Phra Paisal Visalo é um monge Theravada da Tradição Tailandesa da Floresta. Ele é abade de Wat Pah Sukato, no nordeste da Tailândia. Visalo é famoso por seu ativismo social e, principalmente, pela luta pela preservação ambiental em seu país. A Tradição Tailandesa da Floresta tem sofrido muito com a devastação da flora nacional. Neste texto Visalo discute a importância da espiritualidade no ativismo sócio-político e na preservação ambiental a partir de suas experiências como monge de floresta no interior do país.

De PHRA PAISAL VISALO

Durante a última década, a Tailândia testemunhou a ascensão do ativismo civil em todo o país em vários campos que vão desde o meio ambiente, a educação e a agricultura, até reformas constitucionais e democráticas. Este não é apenas um fenômeno de classe média; agricultores campesinos têm estado ativamente envolvidos em todas essas formas de ativismo, utilizando marchas de protestos, manifestações, greves de fome, protestos em massa e outras formas de ação direta não-violenta. Um dos exemplos recentes mais importantes é o comício de três meses em frente à Sede do Governo organizada pela Assembléia dos Pobres, um grande e amplamente popular movimento de pessoas afetadas pela construção de barragens e outros megaprojetos do governo que os roubaram de seus meios tradicionais de subsistência. Simultaneamente, protestos separados foram encenados em importantes províncias do país contra a construção de usinas e gasodutos, todas aprovadas pelo governo supostamente democrático sem a aprovação da população local bem como avaliações ambientais válidas e outros requisitos estipulados pela nova constituição.

Esses incidentes representam não apenas os conflitos entre governo e povo; eles também refletem o conflito mais amplo entre o poder do capital e a sociedade como um todo. Este último é um dos maiores conflitos do mundo nesta era da globalização. De acordo com esta perspectiva, diferentes ações civis na Tailândia, desde protestos contra agências globais como a OMC e a UNCTAD; campanhas como aquela contra produtos alimentares transgênicos; e o movimento de reforma política contra a política monetária; são apenas parte da resposta global ao poder dominante do capital em diferentes aspectos da vida das pessoas, tanto privadas como públicas.

A invasão do capital

A globalização tem sido propagada com a promessa de uma vida melhor dentro de um mundo sem fronteiras. O que realmente foi gerado, no entanto, é um mundo sob a ameaça da hegemonia do capital. Nunca antes o poder do capital foi tão difundido, capaz de invadir e dominar todos os níveis da sociedade e todos os aspectos da vida. A recente onda de liberalização, privatização e desregulamentação não apenas diminui o papel do Estado, mas também aumenta a capacidade do capital de enfraquecer e minar a sociedade – para os próprios propósitos gananciosos do capital. Ao todo, a hegemonia do capital depaupera três aspectos da sociedade – a saber, o material (condições de vida), o social e o espiritual.

Condições materiais e de vida

No nível da comunidade, os recursos naturais e comunitários são sacrificados em favor do crescimento insaciável dos setores comercial e industrial em detrimento das áreas rurais. A diversidade biológica e florestal é dizimada por empresas madeireiras, construção de barragens, agricultura com uso de petroquímicos e projetos de infra-estrutura local. A água, agora uma mercadoria econômica cujo valor de dar a vida é cada vez mais negado aos pobres, é desviada para cidades de importância comercial. Enquanto o solo é cada vez mais degradado e erodido devido ao desmatamento e práticas agrícolas agressivas, as terras rurais são engolidas pelos ricos. Uma vez esgotados todos os recursos físicos importantes, o estilo de vida tradicional dos aldeões é prejudicado praticamente para sempre.

Não apenas os recursos da comunidade, mas também os recursos do estado (orçamento, pessoal, equipamentos e energia) são explorados principalmente para o crescimento do capital. Através da maquinaria e complexo estatais – isto é, político, econômico e educacional – o poder do capital domina e manipula infra-estruturas e políticas para seu próprio benefício. Algumas das políticas que demonstram essa distorção são a política de desenvolvimento desequilibrada que desvia recursos comunitários para alimentar o crescimento incessante dos setores comercial e industrial; a política agrícola que aumentou a dependência do agricultor nos mercados mundiais; e planos de educação que transformam seres humanos em força de trabalho para o mercado.

As recentes políticas de liberalização, privatização e desregulamentação, ao mesmo tempo em que destruíram as redes de segurança social que beneficiavam os pobres, permitiram que os mecanismos de mercado controlassem os serviços básicos que antes eram fornecidos pelo Estado. Isso os torna menos acessíveis e mais caros para os pobres, piorando seu padrão de vida. Assim, os pobres são prejudicados e excluídos pelos novos mecanismos econômicos.

Social

Uma vez que os recursos naturais e físicos se tornam escassos, as comunidades rapidamente se desintegram à medida que a competição tende a aumentar entre os moradores. Uma atitude “só-para-mim” substitui a da cooperação. A situação se deteriora ainda mais quando os costumes e a cultura que antes unificavam comunidades são prostituídos através de sua mercantilização em prol da indústria turística, homogeneizados pelo sistema educacional centrado em Bangcoc e deixados de lado pela nova “cultura de fábrica”. Os relacionamentos na comunidade e na família também são afetados pela migração dos jovens e dos de meia-idade para as cidades, em busca de empregos mais bem remunerados, deixando idosos e crianças para trás. No nível nacional, uma diferença cada vez maior entre ricos e pobres amplia o distanciamento entre as pessoas. Suas perspectivas estão agora tão polarizadas que elas têm muito pouco em comum mesmo vivendo no mesmo país, provando que o bordão “Irmãos e Irmãs Tailandeses” é uma mentira.

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Entrada do Wat Pah Sukhato, Tailândia.

Espiritual

Graças a uma economia de mercado que domina cada vez mais as comunidades locais, o valor monetário penetra na vida das pessoas, abrindo caminho para que o materialismo e o consumismo dominem suas mentes. Cada um tentando enriquecer-se materialmente tanto quanto possível, todos tendem a considerar-se ou como inimigos de competição ou como vítimas para serem explorados. Não apenas o senso de conexão com os outros é enfraquecido ou perdido, as pessoas também ficam isoladas em egos cada vez mais desenraizados e autocentrados.

Enquanto isso, ricos, pobres e as classes médias estão sujeitos a mais estresse, ansiedade e frustração por causa da intensa competição. Não importa quanto a gente consiga ou acumule, não deixamos de duvidar do significado desse estilo de vida e nos sentimos subjugados pelo sentimento de falta, que se expressa em diferentes formas de insatisfação, tais como, preocupação com a riqueza, aparência corporal e status social, sem mencionar os sentimentos de solidão no meio da multidão apressada. Nós, os Tântalos modernos, achamos o significado da vida sedutoramente tentador, mas sempre fora de alcance.

O crescimento insaciável do Capital levando à violência

Todos os problemas acima são manifestações de violência em si mesmos ou levam à violência em diferentes formas, que tem se multiplicado na maioria das nossas sociedades. O sistema econômico e a política que privam os moradores dos seus meios de subsistência tradicionais e recursos naturais, levam à pobreza generalizada, que nada mais é que violência estrutural. Não derrama sangue diretamente, mas inflige sofrimento até à morte, principalmente devido à desnutrição. Essa violência estrutural também leva à violência física aberta, uma vez que estimula protestos de pessoas de todo o país que são suas vítimas. Muitas vezes, o governo e os interesses implicados respondem a esses protestos não violentos com violência – cães policiais e cassetetes, bandidos, prisões, expropriação e execuções extrajudiciais – resultando em muitas mortes, ferimentos e desmembramentos das famílias.

Simultaneamente, o mesmo materialismo e consumismo que minam as relações humanas e naturais em todos os níveis, levam ainda a crimes como o roubo e a violência doméstica. Enquanto as relações eram outrora vinculadas a uma esfera moral comum, a cultura da auto-indulgência coloca poucas restrições aos desejos, mesmo os mais básicos.
Fundamental para essa violência física e estrutural, é a mente sem paz que é dominada pela ganância, raiva, ódio, medo e a atitude individualista que considera os outros como inimigos ou vítimas a serem explorados. Este estado de espírito é prejudicial para si e para os outros e, portanto, pode ser considerado como outra forma de violência.

A violência na sociedade, na família e na mente é encorajada por outro tipo de capital, a saber, o capital ilegal ou clandestino, como o tráfico de drogas, o jogo e o comércio de mulheres e crianças. Boa parte do crime e violência doméstica não é fomentada apenas pelo crime organizado que governa esses negócios clandestinos, mas também por pessoas que são viciadas nos produtos destas organizações. Além disso, devido à influência generalizada do crime organizado no sistema político, muitas vezes ele se apropria do poder do Estado para seus fins ilegais, como a cumplicidade militar e policial no tráfico de drogas.

O crescimento do capital clandestino é alimentado pelas oportunidades criadas pelo capital legal. A desintegração da família e da comunidade, por exemplo, ajuda a criar a demanda por narcóticos e fornece corpos para a indústria do sexo. A globalização também fortalece a economia criminosa. A liberalização do comércio e dos serviços, por exemplo, permite que as empresas clandestinas cresçam internacionalmente, facilita a movimentação de sua riqueza ilegal em apoio a suas atividades e as ajuda a estabelecer conexões poderosas em todo o mundo. Sem o crescimento descontrolado do capital legal, a economia criminosa não poderia globalizar e tornar-se tão poderosa como é agora. Em outras palavras, o crescimento do crime organizado é um corolário natural da globalização econômica.

Ativismo civil como política pela paz

Uma vez que o crescimento descontrolado do poder do capital é a causa da violência generalizada, a pacificação em qualquer sociedade deve incluir tentativas de controlar o poder do capital e impedir que ele se torne uma nova tirania. Sob essa luz, o ativismo civil contra a invasão do capital é absolutamente necessário para uma sociedade pacífica. Tal ativismo pode ser chamado de “política pela paz”. Para que o ativismo civil seja um poderoso agente da paz e reduza efetivamente as diferentes formas de violência, estratégias de confronto (protestos e pressão popular) e programas construtivos (atividades de desenvolvimento e alternativas voltadas para o problema) não são suficientes. Qualquer movimento civil que vise a paz genuína deve promover e formular estruturas alternativas e sistemas capazes de substituir os existentes, mantidos pela violência estrutural. Além disso, uma ideologia ou visão de mundo livre da dominação, do materialismo e do consumismo do capital é um pré-requisito para que o ativismo civil seja uma “política para a paz”.

A ideologia do movimento civil é caracterizada por sua ênfase na cooperação, igualitarismo, relações horizontais e preocupação social. Embora esses valores tornem a ideologia do movimento civil distinta de sua contraparte capitalista, eles são insuficientes para que o primeiro seja uma poderosa alternativa ao último. Um outro aspecto é necessário para a ideologia do movimento civil, a espiritualidade. A espiritualidade se trata da vida interior na qual toda atividade social é baseada e proporciona as fontes mais importantes de vivacidade. A espiritualidade é essencial para que trabalhemos contínua e energicamente pela grande causa comum, sem ficarmos facilmente esgotados, sem sermos cooptados ou sem cairmos em viagens auto-centradas ao ego. Também nos permite sermos pacíficos e felizes interiormente sem grande dependência de riqueza externa ou reconhecimento.

Resumidamente, existem dois aspectos da espiritualidade – a visão de mundo e os valores.

Visão de mundo

A espiritualidade inclui nossos insights sobre a natureza mais profunda dos seres humanos e do universo em que vivemos. Ela tem consciência que todo ser humano tem o potencial para alcançar a mais alta liberdade, isto é, ser livre do sofrimento. Vê que existem muitos níveis de felicidade e encontra a verdadeira fonte de felicidade na mente que está livre do apego, não na aquisição de bens materiais. Uma cosmovisão espiritual genuína não apenas compreende os seres humanos em seu sentido mais profundo, mas também reconhece seu lugar dentro do contexto mais amplo, ou seja, enxerga os seres humanos em íntima conexão com todos os seres do universo.

Sistema de valores

A espiritualidade é refletida e alcançada através de valores como auto-contentamento, simplicidade, compaixão e não-violência. Sob esta luz, a harmonia e o equilíbrio nos relacionamentos com outras pessoas e com o resto do mundo natural é enfatizado em vez do crescimento do indivíduo às custas dos outros. Esses valores proporcionam as sinceras inspirações e motivações necessárias para transformar visões, teorias e estratégias em ações genuínas para a paz.

A espiritualidade é o elemento crucial mais frequentemente esquecido nas ideologias da maioria dos movimentos civis. Não surpreende, portanto, que os movimentos civis frequentemente adotem, inconsciente e inevitavelmente, visões de mundo e sistemas de valores materialistas como se fossem seus. Essa adoção é expressa através dos estilos de vida dos membros do movimento, como quando entretêm-se com produtos de marca ou consumo de luxo. Os grupos evidenciam isso na forma como administram suas organizações e negócios, por exemplo, realizando reuniões em hotéis da mesma forma que o setor empresarial faz. Além disso, o materialismo é frequentemente integrado às suas visões social. O bem-estar material e físico torna-se o objetivo principal de suas atividades, programas, sistemas alternativos e estruturas. Com frequência, os valores sociais e o bem-estar estão incluídos em seus objetivos, como promover virtudes cívicas, fortalecer a confiança e aumentar o capital social. O bem-estar espiritual, no entanto, é quase sempre ignorado.

No entanto, quaisquer atividades sociais que ignorem seu aspecto espiritual estão condenadas ao fracasso. Qualquer projeto de desenvolvimento que consiga aumentar a renda ou diminuir a pobreza das pessoas, mas ignora ajudá-los a se libertarem do materialismo, pode acabar deixando-os à mercê do mercado ou transformando-os em bons clientes das transnacionais. No longo prazo, sua subsistência e bem-estar social serão afetados pelo consumo excessivo, endividamento, competição e tensão na comunidade. Em outras palavras, tais projetos de desenvolvimento correm o risco de fracasso a longo prazo. Eles são meramente reformistas. A política radical também deve ser espiritual.

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Visalo caminhando com um grupo de monges na floresta.

Consumismo e gratificação espiritual

A espiritualidade é tão importante para o ativismo civil que determina se a ideologia de um movimento civil é capaz de resistir ou até mesmo substituir o consumismo, que atualmente é a representação mais poderosa da ideologia capitalista. O consumismo espalhou-se de forma tão difundida em todo o mundo não tanto porque proporciona conforto físico ou comodidade, mas porque satisfaz, ou promete satisfazer, as necessidades espirituais das pessoas, ainda que temporariamente. Em outras palavras, funciona como uma pseudo-religião em sua pretensão de atender às necessidades mais profundas de todo ser humano, ou seja, o desejo de ter uma identidade aperfeiçoada, de ser uma nova pessoa ou de se reinventar.

O consumismo é bem-sucedido porque nos faz sentir que iremos adquirir uma personalidade melhor, seremos essencialmente pessoas melhores, através da posse de produtos de marca, especialmente através do consumo da imagem que vende tanto o produto, que pode ser inútil ou trivial, quanto é o principal fonte de valor. O consumismo também nos dá a liberdade de escolher a aparência de um novo e melhor eu através da cirurgia estética. Isso nos dá um propósito na vida, a saber, acumular e consumir tantos produtos quanto possível. Um objetivo tão claro e concreto faz com que nossas vidas pareçam significativas até certo ponto.

Também promete reduzir o sentimento de falta. Sentimos falta de algo quando notamos a lacuna entre a idealidade e a realidade do nosso ser. Ao consumir os produtos, serviços ou imagens apresentadas pelo consumismo, acreditamos que nossa realidade se aproxima do ideal e, assim, o hiato é reduzido. Na verdade, a lacuna nunca será fechada, pois o ideal, nossas expectativas, sempre se afastam, principalmente porque estamos expostos constantemente a novos produtos através da mídia. A sensação de falta persiste porque percebemos que, uma vez que os produtos são consumidos, a felicidade que alcançamos nunca alcança nossas esperanças e sonhos. A lacuna entre a expectativa e a realidade inevitavelmente mantém o sentimento de falta e auto-descontentamento. Portanto, estamos inconscientemente motivados a adquirir e consumir mais e mais com a expectativa ilusória de que o sentimento de falta finalmente desapareça. É um jogo de futilidade.

A partir de uma perspectiva budista, a sensação mais profunda da falta é o resultado de nosso conhecimento intuitivo de que, nas profundezas do nosso ser, o eu não existe inerentemente. A partir dessa consciência, inseguranças fundamentais e medos emergem, perturbando nossas mentes de vez em quando. Independentemente de nossas tentativas de reprimir tal pressentimento, ele aparece repetidamente, embora distorcido em forma de sensação de falta. É por isso que tentamos nos agarrar a qualquer coisa como se fosse nosso verdadeiro eu. Sob essa luz, o consumismo fornece produtos e imagens de um eu para nós nos agarrarmos. Em outras palavras, ele parece satisfazer a necessidade mais profunda ou espiritual de todo ser humano. Embora não possa satisfazê-la a longo prazo, uma vez que nada que ele fornece é identificável como um eu verdadeiro; funciona temporariamente, criando mais necessidades depois.

A espiritualidade como elemento crítico da ideologia civil

A ideologia dos movimentos civis não pode substituir ou desafiar o consumismo, a menos e até que possa fornecer melhores soluções para as necessidades espirituais das pessoas. É por isso que a espiritualidade deve ser incorporada ao ativismo civil. Para começar, a espiritualidade deve ser incorporada na visão de mundo do movimento civil, para que possa dar melhores respostas às questões da existência: ou seja, o que é o sofrimento e suas causas, e como a libertação do sofrimento pode tornar-se real. Em vez de pensar que o desejo insaciável é o problema, tendemos a pensar que o fracasso em satisfazer os desejos é o problema. Somos como o jogador viciado que diz que “o jogo não é o meu problema; Eu gosto disso. O problema é a minha dívida de US$ 100.000 ”. Um motivo para a popularidade do consumismo é sua capacidade de desviar a atenção das pessoas de seu verdadeiro sofrimento e suas causas; as pessoas assumem que a falta de dinheiro suficiente para comprar coisas, não o desejo ilimitado em si, é o problema real. Eles, portanto, tentam adquirir mais dinheiro em vez de descobrir o que há de errado com suas mentes e com os sistemas sociais que reverberam a cobiça e a ilusão estruturalmente.

Uma visão cívica espiritualmente informada do mundo pode fornecer a perspectiva mais ampla de que existem vários níveis de felicidade. A felicidade material é apenas um nível de felicidade. Camaradagem e vida familiar saudável proporcionam felicidade emocional. Mais profundo do que isso é a felicidade espiritual, que ajuda a reduzir a dependência da acumulação material. Nenhuma ideologia pode dar uma explicação melhor sobre como alcançar a felicidade mais profunda, em oposição ao prazer superficial do consumo insaciável, a menos que incorpore a espiritualidade como parte de sua visão de mundo.

Além de ser incorporada à visão de vida do movimento civil, a espiritualidade deve também fazer parte de sua visão social. O bem-estar espiritual deve ser o objetivo dos programas, sistemas e estruturas que são propostos como alternativas aos existentes que promovem a violência estrutural. A espiritualidade deve fazer parte dos princípios de organização e modo de relacionamento do movimento civil (por exemplo, compartilhamento, cooperação e compaixão). Finalmente, uma visão de mundo e valores espirituais devem estar integrados ao modo de vida de cada membro do movimento civil, especialmente seus líderes.

Uma vez que a espiritualidade é um antídoto ao materialismo e ao consumismo, pode-se propiciar um movimento civil baseado na espiritualidade que possa desafiar o poder do capital sem ser contaminado pelo materialismo e pelo consumismo. Simultaneamente, pode-se criticar e desafiar as falsas instituições religiosas que traem suas origens espirituais em favor do poder temporal e da riqueza. Com a espiritualidade, o ativismo civil não é menor que a política pela paz. Não só resiste ao capital de crescimento insaciável e sua violência estrutural, mas também reduz as fontes de violência na sociedade, a saber, a ganância, o ódio, a raiva e o medo nas mentes das pessoas. A espiritualidade é essencial para relacionamentos harmoniosos dentro da sociedade, já que permite que as pessoas atinjam a felicidade interior e o contentamento com uma vida simples, reduzindo, portanto, a competição e o antagonismo, ao mesmo tempo que estimula a partilha. A espiritualidade genuína inclui bondade e paciência para com os outros, disposição para deixar de lado as agendas pessoais e a capacidade de se sacrificar pelo bem comum. Acima de tudo, a harmonia interna da espiritualidade madura inspira harmonia nos outros. A espiritualidade é também a garantia de que o ativismo civil é pacífico e não-violento. Ela aprofunda e amplia a perspectiva dos ativistas para que percebam que as causas dos problemas sociais não são as pessoas em si, mas o que está dentro delas (egoísmo, ilusão, apego), em conjunto com coisas que vão além delas (estruturas injustas como o sistema econômico, a política oligárquica e o sistema de educação voltado para o materialismo). Isso permite que os ativistas sejam menos críticos e acusadores, e mais tolerantes e estimuladores de indivíduos e grupos, apesar de suas imperfeições.

Com a espiritualidade, percebemos que simplesmente eliminar “as maçãs podres” não resolve os problemas. Somente transformando visões de mundo internas e estruturas externas através de meios pacíficos é que os problemas podem ser resolvidos. Recorrer à violência só piora a situação; antigas visões de mundo fortalecem-se e estruturas violentas tornam-se mais enraizadas ou progressivamente instigadas pela violência, enquanto ciclos viciosos de violência se fortalecem.

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Monges tailandeses de floresta com a bandeira do budismo tailandês.

Em última análise, os objetivos reais do ativismo civil não são impedir a construção de barragens, interromper projetos de gasodutos ou ganhar compensação por terras perdidas. Mais importante do que tudo isso é substituir as estruturas injustas e reduzir a violência estrutural, juntamente com a mudança de atitudes e visões de mundo. Ambos podem ser alcançados apenas através da não-violência e da compaixão. A não-violência pode abrir os corações das pessoas, enquanto a compaixão pode expulsar a raiva e, assim, capacitá-los a ver as causas reais de seus problemas e sofrimentos. A sabedoria que surge é necessária para que se possa enxergar soluções alternativas à violência. Além disso, a paz interior que vem da espiritualidade pode impedir a mente de ceder à raiva, viver em ódio ou reagir por medo, que são as fontes internas da violência.

Com a inspiração espiritual, podemos continuar a luta e mantermos o ideal do ativismo civil, sem ficarmos presos à armadilha do materialismo, sem sermos vítimas da ganância, sem mudarmos de lado e passarmos a contribuir com os poderes constituídos, sem acabarmos esgotados e abandonarmos o movimento. Dessa forma, a espiritualidade fornece a motivação constante e consistente necessária para o trabalho de paz de base a longo prazo.

Em suma, a espiritualidade é essencial ao ativismo civil em todas as suas fases: do desenvolvimento da ideologia e visão social, organização do movimento, preparação de ações diretas e execução de projetos de desenvolvimento; ao modo como os ativistas e as pessoas vivem a vida cotidiana. A espiritualidade também constitui as bases para a paz em todos os níveis; pessoal, operacional e estrutural. Portanto, ao contrário da crença geral, a espiritualidade é parte integrante da política popular. Sem isso, a política popular é uma reação de curta duração aos poderes existentes ou às políticas de poder disfarçadas.

Phra Paisal Visalo
Wat Pah Sukhato
Chaiyaphume, Tailândia
e-mail: psvisa@gmail.com

Texto original em inglês:
http://www.visalo.org/englishArticles/integrate.htm
Traduzido por Tiago da Silva Ferreira

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