Discriminação de gênero e o Cânone em Pali: uma carta de Ajahn Analayo Bhikkhu a Ayya Tathaaloka

Segue abaixo a tradução de um texto a respeito da inexistência de uma discriminação de gênero no Cânone em Páli. No final do artigo poderão ser encontradas as devidas referências utilizadas pelo autor e o link para conferir o texto na íntegra.


12 de dezembro de 2009

Prezada Venerável Ayyā Tathālokā,

Você me pediu para que eu relatasse resumidamente sobre a minha pesquisa em andamento em relação ao tema da discriminação de gênero no Cânone em Pali, então aqui está a minha opinião improvisada, que aborda tópicos que irei examinar mais detalhadamente em um futuro próximo.

Inicialmente, permita-me considerar que, ao analisarmos as escrituras do Cânone em Páli procurando por orientações, devemos estar cientes de que este material é o produto final de um longo período de transmissão oral e, portanto, nem sempre representa fidedignamente o original[i]. A priori, não podemos excluir a possibilidade de que opiniões, que não faziam parte das regras ou dos discursos originais, podem ter influenciado o material canônico como o conhecemos atualmente. Isto não significa que o Cânone em Páli ainda não possa oferecer orientações. Na verdade, isto mostra que durante séculos de transmissão oral, o conteúdo que deve ter surgido na forma de comentários (quando os recitadores se sentiam livres para expressar opiniões pessoais) pode ter se tornado parte do que agora é considerado como canônico[ii].

Isso significa praticamente que, ao invés de tomar passagens isoladas como verdades incontestáveis, é necessário ter ciência da ideia geral encontrada nas escrituras canônicas em relação a um tema específico. Aqui, um critério importante é a consistência. Tendo em vista que de acordo com os discursos, o próprio Buddha apresentou a consistência como um critério para a verdade[iii], seria razoável que ele fosse coerente em suas opiniões. Além disso, para avaliar passagens únicas, um estudo comparativo do mesmo material transmitido por outras escolas budistas iniciais poderia fornecer importantes informações, isto é, particularmente em relação às Vinayas e aos Āgamas preservados em chinês e em outras línguas.

No caso da postura em relação às mulheres, encontramos posições contraditórias e, portanto, uma falta de consistência no cânone em Páli. Um exemplo disso é a narração a respeito da fundação da ordem das monjas[iv]. De acordo com o Mahāparinibbāna-sutta, logo após a iluminação, Buda proclamou que não deixaria o mundo até que ele tivesse monjas como discípulas que fossem sábias[v]. A partir disso, é certo que desde o início ele desejava ter uma ordem de monjas. Este fato é constatado mais fortemente por uma leitura mais próxima do cânone em Pāli, que mostra repetidas referências a respeito da importância de se ter quatro categorias de discípulos (monges, monjas, seguidores leigos masculinos e femininos) e também a respeito da significativa contribuição das monjas ao sucesso e à prosperidade dos ensinamentos do Buddha. Estas passagens contradizem a impressão do senso comum a respeito da fundação da ordem das monjas, que diz que Buda não teria permitido que mulheres entrassem em sua sangha[vi]. Um estudo comparativo das diferentes Vinayas a este respeito, principalmente do chinês, mostra sinais claros de adulterações posteriores e, portanto, aumenta a probabilidade de que estas opiniões não representem precisamente a opinião do Buda.

Outro exemplo seria um par de discursos no Aṅguttara-nikāya que compara as mulheres a cobras negras, pois ambas são sujas, mal-humoradas, traem amigos, etc[vii]. Seria adequado e coerente um professor iluminado fazer observações tão depreciativas sobre as mulheres, sendo que ele, de acordo com outros suttas, tinha inúmeras monjas que realizaram a iluminação e, portanto, conseguiram a total liberdade de todas as impurezas[viii]? Mesmo considerando que o Buddha, de acordo com o mesmo Aṅguttara-nikāya, proclamou que várias monjas e mulheres leigas possuíam qualidades em destaque – como concentração e sabedoria bem desenvolvidas[ix]? Vale lembrar que ele até mesmo colocou confiança nas mulheres quando emitiu algumas regras de conduta aos monges, encontrado em todas as Vinayas, após o relato de uma monja a respeito de uma violação moral feita por um determinado monge[x]. A comparação de mulheres às cobras se repete em outras versões paralelas: uma no Vinaya tibetano, onde uma observação semelhante é seguida pela palavra “algumas”, ou seja, “algumas mulheres são…”[xi]; e outra em um texto tardio do povo Uigur, onde esta comparação não é feita pelo Buddha, mas sim por jovens Sakyas[xii].

Estes dois casos já deveriam ser suficientes para nos alertar sobre a possibilidade da discriminação de gênero no cânone em Pali ser um resultado de adulterações posteriores. Em relação ao posicionamento geral do Budismo inicial frente às monjas, creio que não há dúvidas de que, de fato, existia uma Ordem de Monjas, e disso conclui-se que o Buddha aprovou a sua existência[xiii]. Somado a isto, podemos citar várias passagens que expressam uma atitude muito positiva em relação às monjas e que valorizam suas importantes contribuições ao Dhamma.

Cabe aqui ressaltar que, provavelmente, o Buddha teve que se ajustar aos valores da antiga sociedade indiana – uma sociedade ampla que continha tradições da religião Jainista que, aparentemente, já tinha uma ordem de monjas – ao colocar as monjas em segundo plano em relação aos monges. No entanto, este posicionamento foi ditado pelas circunstâncias culturais e não por um incentivo à discriminação de gênero. Na verdade, considero que uma atitude discriminatória em relação às mulheres seja incompatível com a libertação das impurezas em direção à plena iluminação, sendo que os obstáculos baseados em castas, posição social, raça, ou gênero foram anulados[xiv].

Em suma, parece-me que:

  1. As passagens individuais que refletem uma atitude misógina nas fontes canônicas precisam ser abordadas com cautela, comparando-as com a visão geral do Dhamma e Vinaya e, de maneira mais apropriada, estudando-as à luz de textos paralelos existentes.
  2. As regras que expressam alguma discriminação de gênero provavelmente refletem a antiga cultura indiana e, portanto, são passíveis de revisão tendo em vista um diferente contexto, quando o budismo começa a florescer em um ambiente e cultura distintos. Tal revisão não é contra o Dhamma e a Vinaya, em minha opinião, pois temos que reconhecer o objetivo pragmático das adaptações que são necessárias em qualquer formulação de regras, como documentadas em toda Vinaya. No final das contas, a tradição – que eu pessoalmente valorizo muito – só tem chance de sobreviver se for capaz de se adaptar às circunstâncias contextuais sem deixar de lado o que é essencial. Isto ficaria ainda mais evidente se a nossa análise da situação se basear em uma compreensão clara do que causa dukkha – em nós e nos outros – e do que leva à cessação de dukkha.

Bhikkhu Anālayo

REFERÊNCIAS

[i]  Esta inconstância é perceptível no M 76 (no MI 520,6), segundo o qual o que foi transmitido oralmente pode ser bem lembrado ou não, pode ser correto, mas também pode estar errado, sussutam pi hoti dussutam pi hoti, tathā pi hoti aññathā pi hoti. Um estudo mais detalhado sobre a transmissão oral das escrituras canônicas em Pāli pode ser encontrado em uma tríade de artigos sobre esse tema, na qual eu examino as características orais dos discursos de Pāli em geral, discorro sobre um estudo de caso e abordo o mecanismo cognitivo de memória que explica como as mudanças poderiam ter acontecido, acesse em:

http://www.buddhismuskunde.uni-hamburg.de/fileadmin/pdf/analayo/OralDimensions.pdf

http://www.buddhismuskunde.uni-hamburg.de/fileadmin/pdf/analayo/Verses.pdf

http://www.buddhismuskunde.uni-hamburg.de/fileadmin/pdf/analayo/Memory.pdf

[ii] Eu reuni materiais de apoio à sugestão de que o que originalmente era um comentário eventualmente se tornou parte do material canônico no artigo “The Influence of Commentarial Exegesis on the Transmission of Āgama Literature”, disponível em Proceedings of the Workshop on Translating Buddhist Chinese, K. Meisig (ed.), Wies­baden: Harrassowitz.

[iii] Este é o princípio enfatizado no mahāpadesas, DN 16 em DN II 123,30 e AN 4.180 em AN II 167,31; e também nas referências recorrentes em situações de debate, que mostram a necessidade de consistência, por exemplo, no MN 56, em MN I 377,10: “suas [declarações] anteriores não combinam com as suas [declarações] mais recentes, nem as suas [declarações] mais recentes combinam com as suas [declarações] anteriores” – “na kho te sandhīyati purimena vā pacchimaṃ, pacchimena vā purimaṃ”.

[iv] Um exame mais detalhado está sendo feito nos trabalhos para a conferência de Hamburgo de 2007, que deverá ser divulgada num futuro próximo por meio da Wisdom Publications.

[v]  DN 16 em DN II 105,8: “na … parinibbāyissāmi yāva me bhikkhuniyo na sāvikā bha­vis­santi viyattā vi­nītā vis­āradā bahussutā”

[vi] AN 8.51 em AN IV 274 e Vinaya II 256, um estudo mais detalhado deste tema é um dos meus projetos de pesquisa em andamento: http://buddhistinformatics.ddbc.edu.tw/analayo/#bhikkhuni

[vii] AN 5.229 no AN III 260,24: asuci, duggandho … mittadubbhī; veja também o seguinte discurso:  AN 5.230

[viii]  De acordo com o MN 73, em MN I 490,24, o Buddha contava com mais de 500 monjas que tinham atingido o estado de Arahant.

[ix] AN 1.14 no AN I 24-26

[x] Estes são as duas regras Aniyata. Para um estudo da versão em Pali vejaThanissaro 1994/2007: The Buddhist Monastic Code I, California, pp. 185ff”.

[xi] Uma edição do ’dul ba, da 134b3, que se lê bud me kha cig la, “algumas mulheres”; Uma passagem discutida por Damchö em 2009: 302, em seu PhD sobre nênero (Mūla-) sarvāstivāda Vinaya, veja: http://nunscommunity.net/thesis.html

[xii] Maitrisimit atribui essa declaração a um grupo de jovens Sakyas que ainda estavam sob a influência de impurezas, veja em “Geng, Shimin 1988: Das Zusammentreffen mit Maitreya, Die ersten fünf Kapitel der Ha­mi-Version der Maitrisimit, Wiesbaden: Otto Harrassowitz, p. 178.”

[xiii] Para uma crítica a respeito da insustentável hipótese de que a ordem das monjas teria sido fundada após a morte de Buddha, veja: http://www.buddhismuskunde.uni-hamburg.de/fileadmin/pdf/analayo/TheoriesFoundation.pdf

[xiv] Aqui eu acho que é bastante significativo que o machismo explícito nos discursos seja associado a Māra, a personificação de impurezas, veja SN 5.2 em SN I 129,14.


Fonte: http://www.bhikkhuni.net/gender-discrimination-and-the-pali-canon-a-letter-to-ayya-tathaaloka-from-ven-anaalayo-bhikkhu/

 

*** Traduzido por Caio Rafael Silveira

 

3 comentários em “Discriminação de gênero e o Cânone em Pali: uma carta de Ajahn Analayo Bhikkhu a Ayya Tathaaloka

  1. Todo tipo de discriminação de gênero é a resultante do contexto histórico e cultural de cada povo ..logo,o verdadeiro budismo pregado pelo Buda é a-gênero e não-discriminativo.

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    1. E o próprio Buda é descrito como não possuindo um gênero 100% definido. Tem um texto no blog sobre isso. Se chama “A política dos genitais do Buda”.

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